Soros, o benemérito, Soros, o papão

O nome Soros aparece por todo o lado ligado a maléficas conspirações. Conspirativistas nos EUA apontam-no como membro da cabala de sacrificadores de crianças do estado profundo que se opõe a Donald Trump. Vladimir Putin proibiu as atividades das fundações de Soros no seu país. O mesmo fizeram os regimes autoritários da Bielorrússia, da Hungria (o seu país natal), da Turquia, do Cazaquistão e do Turcomenistão. Até algumas vozes de esquerda fazem coro, por vezes, a denunciar o seu nome. Mas quem é George Soros?

Soros é simplesmente o maior filantropo do mundo. Tem dado mais de metade da sua fortuna a toda a espécie de causas, sobretudo políticas. E que causas são essas? Tem oferecido, diretamente ou através da sua Fundação Sociedade Aberta, financiamentos eleitorais ao Partido Democrata dos EUA; tem financiado iniciativas a favor da democracia numa quantidade de países, desde o apoio a dissidentes ainda no tempo da União Soviética, e depois na Rússia e por toda a Europa de Leste; apoiou também a luta contra o Apartheid na África do Sul. Fundou a Universidade Central Europeia, na Hungria; sustenta muitas iniciativas de apoio à formação de universitários. No domínio da assistência, destaca-se o apoio educacional, médico e contra a pobreza em África. No domínio cívico, tem-se batido pela reforma prisional, pela legalização da marijuana e da eutanásia nos EUA.

George Soros

Nascido em 1930 de uma família judaica não observante, com o nome György Schwartz, a família mudou pouco depois o apelido para Soros, como camuflagem perante o antissemitismo crescente na Hungria. Schwartz quer dizer negro, em alemão e era um apelido muito comum de famílias judaicas; Soros significa sucessor ou herdeiro, em húngaro. Salvou-se por pouco da perseguição aos judeus durante a ocupação nazi e do sangrento cerco de Budapeste, já no fim da guerra.

Mudou-se para Londres em 1947, onde se formou na London School of Economics, trabalhando ao mesmo tempo como criado de mesa e bagageiro de estação ferroviária. Foi aí que se tornou discípulo do seu professor Karl Popper, um dos grandes filósofos do século XX.

A contribuição de Popper é importante para a filosofia da ciência, na sua afirmação de que o conhecimento científico é aquele que pode ser invalidado pela experiência, ao contrário da fé ou da ideologia, que são imunes à confirmação prática. Mas a outra grande contribuição de Popper é que teve um efeito duradouro na vida de Soros: a defesa da sociedade aberta. O pequeno livro A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, escrito durante a guerra, é um apelo vibrante à democracia e à necessidade de defendê-la do fascismo e do comunismo. Por toda a sua vida, Soros tem defendido esta linha, tanto que a principal das suas fundações se chama precisamente Open Society Foudation.

George Soros mau

Imagem de um vídeo conspirativista: "George Soros está a financiar uma revolução nos EUA."

Depois da universidade, encontrando-se a vender souvenirs em lojas de praia, decidiu que não era isso que queria fazer na sua vida. Então, escreveu cartas a todos os bancos comerciais de Londres e teve algumas respostas, tornando-se assim bancário. Começou de baixo mas subiu rapidamente, mudando-se para Nova Iorque e começando a dedicar-se à bolsa.

Geogge Soros criou uma teoria original sobre o funcionamento das bolsas de valores que diverge da teoria clássica. Chamou a essa teoria reflexividade. Os mercados não tendem automaticamente para o equilíbrio (como diz a economia clássica), visto que são fortemente influenciados por fenómenos psicológicos, sociológicos e políticos. Seja devido à sua teoria, seja por talento natural, Soros teve um extraordinário sucesso a gerir fundos especulativos, os chamados hedge funds, tanto para os seus patrões como, em breve, no seu próprio fundo especulativo, primeiro Double Eagle e depois Quantum Fund.

A sua principal proeza foi em 1998, quando especulou contra a libra inglesa, apostando que a moeda iria ser desvalorizada. Quando efetivamente o foi, obteve um lucro de mil milhões de dólares. O Quantum Fund é o hedge fund mais lucrativo da história.

George Soros tem canalizado a sua riqueza para iniciativas que reforçam as suas convicções políticas, no sentido da democracia de centro-esquerda e em particular procurando favorecer concepções económicas mais progressistas do que a escola clássica, nomeadamente através do influente Intitute for New Economic Thinking, um think tank com sede em Nova Iorque que tem o objetivo de "desenvolver e compartilhar as ideias que podem reparar a nossa economia quebrada e criar uma sociedade mais igualitária, próspera e justa", segundo o seu website.

Soros, o papão

Como é que este homem se tornou o papão das teorias da conspiração? Como financiador do Partido Democrata dos EUA, Soros foi, naturalmente, sinalizado como adversário pelos seus adversários republicanos. Nos Estados Unidos, os partidos políticos são na quase totalidade — e com poucos limites — sustentados por grandes interesses económicos, que em geral exigem contrapartidas pela sua generosidade. Ao acusar os democratas de serem sustentados por Soros, os republicanos pretendiam desviar a atenção da sua fortíssima rede de suporte de multimilionários interessados em obstruir a luta contra o aquecimento global, por exemplo.

Esta acusação política banal ganhou outro fôlego quando o discurso político recorreu à conspirativite. Hoje é conhecida a influência da fonte anónima QAnon, mas há vários anos que as teorias de conspiração de apoio à extrema-direita republicana têm grande curso e são propagadas pelo site Infowars de Alex Jones (o mesmo que organizou a manifestação em Washington, em 5 de Janeiro deste ano). Esta tendência explodiu durante a presidência de Trump, mas estava em curso bem antes, com uma rede de órgãos de informação e media sociais a amplificar e normalizar cada invenção louca que surge.

Ser judeu tem contribuído, nas cabeças de quem concebe estas ideias, para a demonização de George Soros, pois toma lugar ao lado da casa Rothschild nas acusações de que uma conspiração judaica procura dominar os governos mundiais — uma ligação genética das modernas teorias da conspiração ao antissemitismo nazi.

Os novos nacionalismos fascizantes odeiam Soros também, pois ele, além de defender uma política global e cosmopolita, tem efetivamente gasto dinheiro a tentar sapar as suas tentativas de acesso ao poder. Na sua terra natal, a Hungria, em que a democracia foi praticamente derrubada por Viktor Orbán, as campanhas contra Soros têm sido ferozes, com laivos pouco discretos de antissemitismo. Uma das piores ofensas de Soros foi a sua defesa dos direitos do refugiados, o que é anátema para a xenofonia oficial.

Nem sequer em Israel Soros é bem visto pelo poder, pois tem-se pronunciado contra a política de Netanyahu de acentuar o caráter de apartheid do regime israelita.

Pronto. Pode-se discordar das opções políticas de George Soros, mas não é, certamente, uma influência sinistra na política de hoje. Quem acredita que Soros é o papão, para além de mal informado, está a reforçar a mitomania fascista.

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