Jesus, o impasse hermenêutico

Continuando de New French Mythicist Book... Vemos como a autora Nadine Charbonnel, uma filósofa, inicia a sua jornada com a relação da tradição filosófica com a Bíblia, no livro Jésus-Christ, Sublime Figure de Papier. Este é apenas um de uma extensa série de artigos que Neil Godfrey, no seu blogue Vridar, consagrou a discutir este livro.

Lembremo-nos que Nanine Charbonnel é uma filósofa da hermenêutica. O capítulo de abertura oferece-nos a sua contribuição distinta para a questão implícita no título do livro. O seu título é Filosofia e Antigo Testamento: O Impasse Hermenêutico.

Nanine Charbonnel começa por perguntar que relevância a filosofia francesa tem para a Bíblia. A sua resposta resumida: a Bíblia foi tratada como uma escritura sagrada ou é totalmente evitada.

“Qu’est-ce que la philosophie française d'aujourd’hui fait de la Bible? C’est le règne du tout ou rien: elle est Écriture sainte, ou bien à éviter.”

Alguns filósofos devotos aplicaram o seu talento analítico à Bíblia, ao serviço da sua fé. O Velho Testamento foi minado, em busca de joias que possam ser interpretadas – isto é, racionalizadas – como linhas de base da nossa consciência moral. Aqueles versos que declaram a criação da humanidade à imagem de Deus, e Deus que se identifica como a essência do ser ("Eu sou o que sou") foram tratados como pontos de partida promissores.

Filósofos proeminentes (Kierkegaard, Hegel...) têm regularmente aludido aos heróis bíblicos (Abraão, David, Job...) como exemplos vários de moralidade.

Charbonnel aborda as contribuições de figuras-chave.

Kant

Immanuel Kant

Kant, um pilar filosófico para com o qual o pensamento moderno ainda está em dívida, removeu-se humildemente de qualquer capacidade de sujeitar as Escrituras à mera razão. No entanto, era importante para Kant demonstrar que a Bíblia fazia sentido no mundo do que era aceite como verdadeiramente moral e racional. Para o conseguir, ele reverteu a abordagem interpretativa tradicional que começava com a crença na infalibilidade divina do texto e, em seguida, seguia os seus ditames literalmente, e em vez disso aplicou o seguinte princípio hermenêutico:

“A moralidade não deve ser interpretada de acordo com a Bíblia, mas a Bíblia de acordo com a moralidade. No exemplo do [Salmo 59, clamando por vingança], Kant propõe duas soluções: ou encontrar um sentido moral figurativo, ou encontrar um significado político específico, neste caso a política de Deus.” (Charbonnel, p. 20, tradução)

Rousseau

Jean-Jacques Rousseau

O filósofo francês Rousseau virou as costas à Bíblia e promoveu a própria Natureza como as escrituras divinas que poderiam ensinar-nos tudo o que era bom para nós. A Bíblia, como qualquer outro livro, foi para Rousseau uma criação humana corrompida.

“Então fechei todos os livros. Existe apenas um aberto a todos os olhos, é o da natureza. É neste grande e sublime livro que aprendo a servir e adorar o seu divino autor. Ninguém é desculpável por o não ler, porque fala a todos os homens numa linguagem inteligível a todas as mentes.” (Tradução da citação de Charbonnel de Rousseau, Émile.)

Spinoza

Baruch Spinoza

Spinoza aceitou corajosamente a visão de que Moisés não escreveu o Pentateuco, mas que as leis foram compostas especificamente para um estado da Judeia da era persa. O valor da Escritura deve ser encontrado apenas na sua orientação moral. Além disso, como revelação divina de Deus, na medida em que ensinava a moralidade divina mais elevada, para Spinoza também era evidente que qualquer coisa vinda de Deus não poderia violar as leis básicas da razão. O longo dia de Josué, portanto, não foi um milagre literal do sol parado, mas uma ilusão causada por algum distúrbio atmosférico, suspensões de gelo ou algo semelhante, causando uma refração incomum da luz. (Spinoza estava sendo especialmente inteligente ao usar este milagre específico para racionalizar, porque apenas trinta anos antes Galileu tinha sido condenado por contradizer a Bíblia, dizendo que o Sol não se movia!) A racionalização de Spinoza é resumida nas suas palavras:

“Podemos, portanto, concluir que tudo o que a Escritura apresenta como tendo realmente acontecido, ocorreu necessariamente de acordo com as leis da natureza, como tudo o que acontece; e se houver qualquer facto do qual possamos provar logicamente que contradiz as leis da natureza ou não foi produzido por elas, devemos acreditar plenamente que é um acréscimo aos livros sagrados por homens sacrílegos...” (Tradução da citação de Espinosa por Charbonnel, Tratado Teológico-Político.)

Métodos histórico-críticos alemães

No início do século XIX, a erudição alemã timha minado efetivamente a crença literalista na Bíblia. Os babilónios e persas, não Deus, eram a fonte das histórias da Torre de Babel, Satanás, um Jardim do Éden, ideias como a ressurreição e o juízo final. Samuel e David não eram os grandes reformadores religiosos, conforme relatado nas Escrituras. As suas histórias só surgiram séculos depois de supostamente terem vivido, após o cativeiro babilónico. Mitos e ficção preenchiam muitas das histórias. O livro de Isaías não fora escrito por um único profeta. O Livro de Daniel fora composto até à época dos Macabeus.

Este método, porém, não eliminou a necessidade de muitos, de continuar a encontrar fundamentos morais na Bíblia.

Análise literária

Se a Bíblia estava a desintegrar-se como obra de história infalível, poderiam as ferramentas literárias ajudar-nos a encontrar uma forma adequada de entender o que poderíamos aprender validamente sobre a Bíblia? Charbonnel lembra-nos que as técnicas literárias conhecidas pela maioria dos estudiosos eram aplicáveis à literatura greco-romana ou outras literaturas, mas não aos textos bíblicos. Eu não sabia o que Charbonnel apontou sobre a aplicação da noção de géneros literários à Bíblia:

“Como sabemos, foi só pela encíclica do papa Pio XII de 1943, Divino afflante Spiritu, que o uso da noção de géneros literários foi autorizado pelo magistério católico.”

Robert Lowth

Uma figura pioneira no abrir de uma compreensão das técnicas literárias do Antigo Testamento foi Robert Lowth. Técnicas como paralelismos e quiasmas foram consideradas as chaves poéticas para as apresentações “sublimes” da Bíblia, mas essas técnicas retóricas (incluindo as simbólicas e metafóricas) também foram comparadas à poesia grega antiga. Eram técnicas humanas, não divinas.

Mito

Os primeiros cristãos denunciaram os mitos gregos como mentiras geradas por Satanás, mas os primeiros oponentes do cristianismo aplicaram a mesma acusação de mito infundado às crenças cristãs. Os mitos gregos eram interpretados por muitos antigos como representações alegóricas de realidades psicológicas ou outras, e os deuses eram explicados como grandes figuras do passado divinizadas e declaradas fundadoras de tribos, estados e assim por diante.

Na época do Iluminismo, havia uma guerra aberta entre a Igreja e os filósofos deístas e livres pensadores, com acusações de fraude, cegueira deliberada, manipulação, engano, fuga. A credulidade estava em guerra com seu oposto.

Explorações académicas e classificações de “mitos” tornaram-se cada vez mais sofisticadas ou complexas. Noções de fábulas, de alegorias filosóficas, de mitos rudes da natureza, de lendas, de contos mágicos e fantásticos... As histórias da Bíblia também estavam a ser vistas como uma coleção de todos os tipos de “mitos”, alguns mais positivos ou nobres do que outros.

Paul Ricoeur

Em tempos mais recentes, chegamos até ao ponto em que os crentes modernos podem aceitar a noção de mito como um portal para a sua fé e salvação. O mito tornou-se respeitavelmente moderno. De acordo com Paul Ricoeur,

“O mito será aqui entendido como o que a história das religiões agora encontra nele: não uma explicação falsa por meio de imagens e fábulas, mas uma narração tradicional que se relaciona com eventos que aconteceram no início dos tempos e que tem o propósito de fornecer o fundamento das ações rituais dos homens de hoje e, de maneira geral, estabelecendo todas as formas de ação e pensamento pelas quais o homem se entende no seu mundo. Para nós, modernos, um mito é apenas um mito porque já não podemos ligar aquele tempo com o tempo da história como a escrevemos. empregando o método crítico, nem podemos conectar lugares míticos com nosso espaço geográfico. É por isso que o mito já não pode ser uma explicação; excluir a sua intenção etiológica é o tema de toda a desmitificação necessária. Mas, ao perder as suas pretensões explicativas, o mito revela o seu significado exploratório e a sua contribuição para a compreensão, que mais tarde chamaremos a sua função simbólica, ou seja, o seu poder de descobrir e revelar o vínculo do homem com o que ele considera sagrado. Por mais paradoxal que possa parecer, o mito, quando assim desmitificado pelo contacto com a história científica e elevado à dignidade de símbolo, é uma dimensão do pensamento moderno.“ (Ricoeur, p. 5, da tradução inglesa para citação de Charbonnel)

Mais,

“O estrato de mitos, ao qual somos referidos pela especulação pseudo-racional, remete-nos, por sua vez, a uma experiência situada num nível inferior a qualquer narração ou gnose. Assim, o relato da queda na Bíblia, mesmo que venha de tradições mais antigas do que a pregação dos profetas de Israel, obtém o seu significado apenas de uma experiência de pecado que é, em si mesma, uma realização da piedade judaica. É a 'confissão dos pecados' no culto e o apelo profético por 'justiça e retidão' que fornecem ao mito uma substrutura de significado...“

“Considerarei os mitos como uma espécie de símbolos, como símbolos desenvolvidos na forma de narrações e articulados num tempo e num espaço que não podem ser coordenados com o tempo e o espaço da história e da geografia, de acordo com o método crítico. Por exemplo, o exílio é um símbolo primário da alienação humana, mas a história da expulsão de Adão e Eva do Paraíso é uma narração mítica de segundo grau, trazendo à cena personagens, lugares, tempos e episódios fabulosos.“ (Ricoeur, pp. 6, 18, da tradução inglesa para citação de Charbonnel)

O mito tornou-se então aceitável, até mesmo razoável:

“Assim, um papa [João Paulo II, Audiência de 19 de setembro de 1979] pode dizer: “o termo ‘mito’ não designa um conteúdo fabuloso, mas apenas uma forma arcaica de expressar um conteúdo mais profundo.”

Portanto, o termo mito já não serve como uma crítica decisiva à Bíblia. Devemos falar de símbolos ou figuras significativas? Não confundimos o simbólico com a realidade, mas mesmo assim consideramos os símbolos significativos.

Charbonnel, pelo que entendi, quer evitar o termo mito e falar das histórias da Bíblia como textos literários. Ela fala da necessidade de inventar ferramentas que nos ajudem a entender e trabalhar com a coleção de narrativas canónicas. Nem todas são história e queremos evitar estar exclusivamente focados na historicidade, por trás das narrativas, como estão muitos investigadores.

A nossa intenção não é destruir, separar e demolir a Bíblia, mas entendê-la mais plenamente. Os próximos dois capítulos de NC examinam as ferramentas que, confia ela, ajudarão a atingir essa meta.

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