Confissão

Estou velho.

Atingi, à custa de muito sofrimento e ansiedade, alguma sabedoria.

Mas é tarde de mais para agir sobre ela. Mesmo que eu tivesse a pachorra, a generosidade, a ilusão de agir sobre ela, não iria adiantar muito.

As hostes que eu iria querer motivar, preferem verdades mais simples. Aquelas a que eu me entreguei quando era jovem,

Livrar-me das certezas ingénuas levou tempo, muito trabalho mental. Aquilo que se aprende é difícil de transmitir. Aprender com a experiência dos outros é quase impossível. Na verdade, até aprender com a nossa própria experiência é muito complicado.

Quando era jovem, fui militante. Fiz o meu melhor, mas hoje digo, ainda bem que aquilo que eu ambicionava não era possível. Iria ser distópico.

Compreendi mais tarde, ao analisar o que realmente acontece com as ilusões ideológicas que embalam os participantes na História, como eu, que a consciência política, mesmo dos mais supostamente conscientes — e até sobretudo esses — é muito limitada.

O velho Karl Popper tinha razão: a realidade social é demasiado complexa para se poder prever o futuro.

Cego entre cegos

Carlos Cabanita

Em 1975, um colega meu, trabalhador do jornal República, maoísta, chorava. Chorava mesmo, garanto. "Porra, eu pensava que ia lutar pela classe operária, fazer greves contra o patronato. Afinal, aqui estou, a tomar posição a favor do patronato e contra os trabalhadores!" Eu não era maoísta e tinha o coração pesado exatamente pela mesma razão. Na Rua da Misericórdia, junto ao jornal, militares do MFA disparavam tiros para o ar, as balas a passar mesmo junto à varanda onde eu estava mas não devia estar, para intimidar manifestantes do PS que protestavam contra a tomada do jornal pelos trabalhadores, na maioria do PCP.

Entre 72 e 79, fui um militante quase em full time. Até cuidei de uma impressora clandestina, antes do 25/4. Tinha reuniões todos os dias, todas as noites, quase sempre até às tantas da madrugada. Fui a toda a espécie de sítios, noite após noite, pagando os transportes. Todas as prioridades pessoais passaram para trás. Curso, emprego, amor, tudo foi preterido perante a necessidade política. Supostamente, por causa da revolução

E no entanto, o que fiz com todos esses sacrifícios, foi lutar pela instauração da nossa corrupta democracia burguesa e opor-me à tomada do poder pelos comunistas. E de acordo com um plano acordado entre Mário Soares e Frank Carlucci, embaixador dos EUA em Lisboa, com a cumplicidade de Willy Brandt, chanceler da RFA, e François Mitterrand, presidente de França. Plano esse de que eu estava inteiramente ciente, devo dizer.

Não vou entrar nos pormenores que me levaram, marxista revolucionário que era então, a militar na Juventude socialista, até a ocupar lugares de direção. Fica para outra ocasião.

A minha ideologia não me permitia compreender, nesse tempo, os processos históricos em que participava. Mesmo hoje, obrigo-me a dizer, tenho só a mais vaga das ideias. Isto dito, no fim de contas, acho que fiz bem. Talvez. Confio que sim. Mas, em última análise, fui um ator cego da História. Como todos os outros.

Anda um tipo a ler o Manifesto, a estudar o Capital, a gastar milhares de horas em reuniões acaloradas para ter um papel heróico no drama da libertação da Humanidade — e depois acaba por ter que admitir que foi mais um participante cego, inconsciente, de um processo coletivo. Custa a engolir. Aliás, foi o lado mais duro de aceitar quando deixei de militar: reconhecer que eu era apenas mais um paisano, sem mais poder nem sabedoria para influenciar os acontecimentos do que qualquer outro paisano. O herói caído...

Depois disso, nunca mais consegui fazer política ativamente, para além do básico exercício da cidadania. Traumatismo? Talvez...

Tá bem. E agora?

Sabendo que nada sei, continuei sempre a interrogar o sentido da História. Haverá um futuro melhor? O sacrifício de quem luta contra as injustiças, pela liberdade, pela solidariedade,pela sobrevivência, será em vão? Espero que haja um futuro melhor e espero que, mesmo sem sabermos bem o que estamos a fazer, estejamos a contribuir para que ele aconteça.

Mais do que aderir a uma ideologia, precisamos de saber o que está certo e o que está errado. Mais do que política, é uma questão ética.

Nunca sacrificar a liberdade pela igualdade.

Nunca comprometer a solidariedade em nome da eficiência.

Não sacrificar a verdade em nome da conveniência.

Fazendo força na direção certa, vamos mover a nossa sociedade para lá. Não haverá, certamente, a súbita redenção. Não aparecerá o Senhor, acompanhado de trombetas, a cavalgar uma nuvem no céu e a convidar-nos para a Jerusalém Celeste.

Quando os problemas que mais nos afligem agora estiverem resolvidos, certamente aparecerão outros problemas. Talvez porque, numa sociedade que entretanto, se foi tornando melhor, os tais problemas são mesmo reais e aflitivos. Se forem resolvidos, confio que a sociedade será melhor. Mas não deixará de ter problemas.

Talvez um dia os historiadores, ao debruçar-se sobre um período ainda vindouro, marquem um dado momento dramático, analisem certos parâmetros e indicadores e digam: Ah, deve-se considerar que foi aqui que começou o Tempo das Cerejas!

Mas garanto que quem viver esse momento — talvez de tumulto e incerteza — não terá sabido disso.

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