A ciência romana estava em declínio?

Por Richard Carrier (excerto do seu novo livro)

Existe há muitos anos uma polémica em História, sobre o caráter progressivo ou decadente da Idade Média e sobre, por oposição, a presença ou não de espírito científico na Antiguidade Greco-Romana. São, em geral historiadores católicos quem doura a pílula da era medieval como época de progresso, e quem denigre a ciência da Antiguidade. Para esses autores, a Antiguidade não tinha noção dos instrumentos do progresso científico e foi o cristianismo o fator de desenvolvimento do pensamento científico, no fim da Idade Média. O que está ém jogo é considerar o cristianismo uma influência progressiva ou reacionária na História.

Richard Carrier doutorou-se na Universidade de Columbia em História Antiga, com especialização na história intelectual da Grécia e Roma, particularmente na filosofia, religião e ciência antigas, com ênfase nas origens do cristianismo e no uso e progresso da ciência sob o império romano. É também um especialista publicado na filosofia moderna do naturalismo como visão do mundo. É o autor de On the Historicity of Jesus (onde conclui que a existência histórica de Jesus é pouco provável), Proving History (sobre o uso de metodologias científicas na investigação histórica, nomeadamente o Teorema de Bayes), Sense and Goodness without God (ateísmo e moral), The Scientist in the Early Roman Empire, Science Education in the Early Roman Empire, Not the Impossible Faith (sobre a difusão do cristianismo), Why I Am Not a Christian (defesa do ateísmo), Jesus from Outer Space (sobre o significado do céu para os antigos), e Hitler Homer Bible Christ (exemplos de investigações históricas). Dedica-se também à apologia da poliamoria.

Richard Carrier contesta as teses desses historiadores católicos ou simpatizantes, no seu livro The Scientist in the Early Roman Empire, baseando-se em pesquisa histórica recente. De notar que Carrier não culpa os cristãos pela decadência do Império Romano, antes os considera um factor resultante e participante nessa decadência, a partir da crise geral do Império no século III. Convém também diferenciar entre a Baixa Idade Média, em que a decadência do pensamento científico é abismal, e a Alta Idade Média, em que se vê uma recuperação paulatina da ciência, que irá frutificar na Renascença.

Publico aqui uma tradução de um artigo de Carrier sobre o livro no seu blogue richarcarrier.info, o qual inclui um excerto do livro.

Diz Carrier:

O meu novo livro The Scientist in the Early Roman Empire (O Cientista no Império Romano Inicial) será publicado dentro de poucos dias! Pode já encomendá-lo previamente impresso ou no Kindle. Mas em celebração e promoção, estou aqui a reproduzir um excerto do mesmo. Pode ler um pouco mais sobre o livro em Pitchstone. Na próxima semana, começo a gravar o audiolivro. Isto conclui a publicação da minha dissertação na Universidade de Columbia, ampliada e revista para um público mais vasto, mas ainda inteiramente académica (é fortemente anotada; só a bibliografia estende-se por sessenta páginas). Lê-se no índice básico:

  • Introdução:
  • O Filósofo Natural como Cientista Antigo
  • A ideia romana do progresso científico
  • Em Louvor do Cientista
  • Rejeição cristã do cientista
  • Conclusão

Mas há muito mais, incluindo levantamentos completos da história da ciência e tecnologia antigas, e secções como “O Cientista como Herói na Era Romana”, “O Cientista como Artesão na Era Romana”, e “Os Métodos dos Cientistas Romanos”. Provavelmente, o tratamento mais completo da ciência romana em mais de quarenta anos. Aqui está uma dessas secções, 3.7, “A Ciência Romana Estava em Declínio?” Também acrescentei hiperligações nesta apresentação. Começa logo após ter acabado de provar, com extensas evidências e citações de estudiosos, que os romanos estavam plenamente conscientes e elogiavam o progresso científico passado e sequente, e além disso estavam empenhados na sua produção. Esta secção refere-se a outras partes do livro, mas está a ver a ideia. Encontrará aí indicações de muitas outras jóias. Por isso, deve comprar um exemplar!

A Ciência Romana estava em decadência?

Alguns estudiosos afirmam que a ciência sofreu um declínio estagnante durante o período romano. Lucio Russo afirma mesmo (absurdamente) que “os romanos não estavam interessados na ciência” e tinham abandonado os objetivos e métodos superiores dos seus antepassados helenistas.775 Tais afirmações são, em última análise, infundadas. Não há evidência de qualquer diferença, muito menos declínio, nos objetivos científicos ou na metodologia entre, por exemplo, Hiparco e Ptolomeu, ou Herófilo e Galeno (os exemplos favoritos de Russo). Apenas romantizando os cientistas helenistas, e imaginando (de forma implausível) que nunca mantiveram ou defenderam quaisquer crenças absurdas ou erróneas, Russo pode conseguir qualquer aparência de declínio. Um erro mais frequente é comparar os cientistas helenistas com os leigos romanos, como se os leigos helenistas saíssem melhor em comparação com os cientistas romanos. Os mitos de um “declínio romano” baseiam-se assim frequentemente em avaliações de autores leigos como Plínio o Velho, em vez de cientistas romanos reais como Dioscórides, Heron de Alexandria, Marino de Tiro, Menelau de Alexandria, Ptolomeu, Galeno, ou Sorano de Éfeso.776 Mas os erros e métodos errados ou inexactos de um autor como Plínio, o Velho só nos dizem sobre os padrões e práticas dos admiradores leigos da ciência, não sobre o que os cientistas reais estavam a fazer.

Claro que as avaliações negativas dos méritos de Plínio também são frequentemente exageradas.777 Mas, mais importante, um autor individual nem sempre representa toda a sua sociedade – basta comparar o tratamento da ciência médica por Plínio com o do seu antecessor Aulo Cornélio Celso [Não confundir com o filósofo grego Celso contra quem escreve o apologista cristão Orígenes] para ver que tratamento superior o mesmo assunto poderia receber de outro autor leigo da mesma época.778 Nem sempre é adequado implicar com cientistas individuais. Heron pode nem sempre parecer tão rigoroso e brilhante como Arquimedes, mas essa pode ser a própria razão pela qual as obras de Heron foram preservadas, e nem sequer as de Arquimedes, muito menos as de outros engenheiros romanos que podem ter sido igualmente rigorosos e, portanto, demasiado ininteligíveis para os antiquários medievais, para justificar uma cópia. Afinal, não se pode deixar de perguntar o que aconteceu aos escritos mecânicos de Menelau, Apolodoro de Damasco e Ptolomeu, muito menos aos de autores desconhecidos. Da mesma forma, não se pode afirmar que as falhas de Estrabão em geografia ou astronomia foram sintomáticas da era romana, quando essa mesma era também produziu a obra superior de Marino e Ptolomeu nesses mesmos campos, e especialmente quando não se pode estabelecer que nenhum dos antecessores helenistas de Estrabão era pior do que ele.779

Também não faz qualquer sentido manter que houve um “ressurgimento do entusiasmo religioso” na era helenística que funcionou contra o avanço científico.780 Não há nenhum bom argumento a favor de que a religiosidade e a superstição alguma vez tenham estado em declínio. O ceticismo e o racionalismo permaneceram tão presentes mas tão incomuns como sempre, pouco mais do que preocupação de uma elite rarefeita, enquanto a superstição e a irracionalidade continuaram a ser a norma, contra a qual homens excecionais tinham lutado mesmo na Atenas Clássica.781 E embora os antigos cientistas de todas as épocas tivessem abraçado más ideias, e não seguissem os seus próprios métodos recomendados de forma tão consistente como gostaríamos, o mesmo se poderia dizer dos sábios da Revolução Científica. As ideias de Galileu sobre as marés e os raios visuais estavam frequentemente muito erradas, Kepler estava obcecado com a harmonia das esferas e Newton perseguia a alquimia e trabalhava profusamente em teorias bíblicas da história, profecia e cosmologia, passando um tempo considerável a tentar prever o Apocalipse.782 Entretanto, a sangria continuou como um tratamento médico “científico” até ao século XVIII. O século XIX tornou-se uma época infame de charlatanismo médico. Portanto, nós, os modernos, não estamos em posição de julgar.

A primeira metade deste capítulo já mostrou como as alegações de estagnação científica e tecnológica sob os romanos são implausíveis. Peter Green admite que “houve um tipo de progresso”, mas depois afirma que ficou “um legado de peso morto do passado que, em muitos aspetos, tornou o verdadeiro progresso virtualmente impossível”, uma afirmação judiciosamente desprovida de sentido, uma vez que não explica o que é suposto contarmos como progresso “verdadeiro” ou porquê.783 Já vimos que estudiosos como Peter Green estão obcecados em encontrar falhas no que os antigos não inventaram ou descobriram, enquanto ignoram quase tudo o que inventaram e descobriram, e depois acusam-nos de não terem inventado e descoberto nada. O que então procedem a explicar com uma ou outra hipótese fantasiosa. Trata-se de uma forma peculiar de fazer história. Como exemplo no próprio nexo entre ciência e tecnologia, Green queixa-se de que os antigos não inventaram “medidores de vapor, termómetros, microscópios, telescópios, [e] tornos de calibração fina”, como se estas fossem de alguma forma tecnologias óbvias e fáceis de conceber, ignorando ao mesmo tempo os inúmeros instrumentos que os antigos cientistas inventaram para aprofundar a sua investigação.784

Galileu, Heron e Galeno, adaptação de gravuras renascentistas

Mais absurda é a afirmação de Aubrey Gwynn de que “o Império Romano nunca produziu uma descoberta científica que tenha sido de utilidade permanente para a humanidade”.785 Por exemplo, a lei de refração de Ptolomeu não era inteiramente correta, mas estava próxima, e as suas ideias e procedimentos para a descoberta experimental de uma lei matemática de refração eram certamente de utilidade permanente para a humanidade, e embora a experimentação de Heron com maquinaria movida a vapor não tenha levado imediatamente a uma máquina a vapor prática, foi um primeiro passo necessário que acabou por inspirá-la, pelo que a descoberta de Heron de que o vapor podia ser utilizado para produzir movimento mecânico foi de utilidade permanente para a humanidade. Entretanto, muitas descobertas romanas (como em farmacologia) foram certamente de uso permanente para a humanidade, ou podem ter-se perdido, enquanto outras (como a terapia de eletrochoque) permanecem em uso, mesmo que em aplicações diferentes. As descobertas romanas ainda (mais ou menos) em uso incluem o sistema de projeção cartográfica de Ptolomeu, o princípio de Heron da menor acção na reflexão, as descobertas experimentais de Galeno relativas à função renal, a trigonometria esférica de Menelau, e a ideia de álgebra simbólica de Diofanto de Alexandria – hoje em dia não usamos estes mesmos sistemas de trigonometria e álgebra, tal como não falamos latim clássico ou grego antigo. A inovação mais crucial de Ptolomeu na teoria planetária, a aceitação de velocidades planetárias inconstantes e a proposta de uma lei do movimento planetário (ângulos iguais em tempos iguais), revelou-se essencial para a solução de Kepler para os movimentos e órbitas planetários (atualização da lei de Ptolomeu para áreas iguais em tempos iguais), enquanto que os esforços de Ptolomeu e Galeno para unificar as suas ciências e epistemologias foram de benefício ainda mais geral para a ciência moderna. E depois houve descobertas úteis que muitas vezes ignoramos. Por exemplo, uma das áreas em que Galeno sabia que estava a fazer progressos consideráveis era a fisiologia da voz e da fala, prosseguindo um programa de investigação abrangente, envolvendo observações e experiências fisiológicas e anatómicas extensivas em todos os órgãos relacionados, desde os pulmões e tórax até aos nervos e músculos da garganta, laringe, língua, e mais.786

Tal como os antiquados disparates de Gwynn, a maioria das alegações de um declínio romano são tão contrárias aos factos que dificilmente precisam de ser refutadas. O exemplo mais famoso é uma série de afirmações de Samuel Sambursky, todas infetadas por conceções fantasiosas e inexatas da ciência antiga, muitas das quais já foram destruídas em secções anteriores deste capítulo.787 Os cientistas antigos não estavam isolados uns dos outros, mas desfrutavam de comunicação e interação frequentes, e da partilha e acumulação de resultados.788 Não houve desdém relevante entre eles pelo trabalho de oficina e pela tecnologia.789 Não houve oposição significativa à mudança ou interferência com a natureza.790 Não houve aversão às experiências.791 Não houve falha na matemática do estudo da natureza.792 Na realidade, compreenderam os processos naturais mecanicamente e não organicamente.793 E não há evidência de qualquer “aumento” significativo da irracionalidade sob os romanos (pelo menos antes do século III EC).794 Tudo o resto que Sambursky propõe confunde os efeitos da Revolução Científica com as suas causas, e assim não explica nada, mesmo quando é verdade.795.

Assim, quando Sambursky afirma que uma estagnação imaginária resultou de uma “falta de experimentação sistemática e da consequente estagnação da tecnologia, e da incapacidade de desenvolver notação algébrica e de introduzir símbolos e procedimentos matemáticos na descrição e explicação de fenómenos físicos”, já sabemos que cada uma destas afirmações é falsa.796 Os romanos estavam a ver progressos em tudo. E até Sambursky sabia que tinha de qualificar as suas observações, admitindo que os romanos tinham “uma maior consideração pelas provas de observação e uma procura crescente por uma descrição mais precisa” e estavam a conduzir experiências sistemáticas que “levaram a conclusões em conflito com as conceções aristotélicas sobre a natureza da luz” e outros assuntos. Assim, conclui, só depois da época de Galeno e Ptolomeu é que “os efeitos combinados das tendências irracionais dentro do neo-platonismo e da atitude anticientífica da Igreja primitiva”, e o declínio geral das instituições de ensino em todo o lado, puseram finalmente fim à investigação científica.797.

Da mesma forma, Ludwig Edelstein afirmou uma vez que “a ciência antiga permaneceu relativamente inútil” e que “mudanças que, em princípio, estavam ao nosso alcance não foram realmente feitas”, porque os cientistas empíricos eram demasiado cépticos para teorizar, os teóricos eram demasiado desinteressados na investigação empírica, e todos estavam desinteressados de controlar o mundo natural através da tecnologia.798 Mas nenhuma destas afirmações é verdadeira, como qualquer leitura de Galeno, Ptolomeu, Heron, ou Vitrúvio revelaria facilmente. Mais credível mas ainda duvidosa é a afirmação de Peter Green de que “os métodos quantitativos, essenciais ao verdadeiro progresso científico, evidenciavam-se pela sua ausência” entre os Romanos.799 Mas ele nunca explica o que quer dizer com “verdadeiro” progresso científico, ou mesmo “métodos quantitativos”. Será que todo o progresso científico que acabei de documentar era “falso”? Será que medir doses de medicamentos, ângulos de refração, vantagens mecânicas ou velocidades dos planetas não era “quantitativo”? Havia certamente muitas falhas na forma como a ciência antiga era conduzida, mas a ausência de métodos quantitativos não se encontrava entre elas. No máximo, pode-se dizer que tais métodos não foram explorados mais amplamente do que poderiam ter sido, mas não houve um declínio evidente a este respeito.

Peter Green fez muitas outras acusações absurdas. Por exemplo, ele afirma que “o enorme peso da autoridade [de Aristóteles]” fez “mais para atrasar o progresso da astronomia do que qualquer outro factor isolado”, mas o progresso na astronomia não foi atrasado, e como vimos, a autoridade de Aristóteles não era particularmente grande na antiguidade (de facto era maior no início da Revolução Científica).800 Green afirma que a tendência helenística para a filosofia moral “culminou no abandono da verdadeira investigação” e numa “reversão” para a teorização excessiva, mas nunca identifica qualquer ponto no tempo em que a investigação que tem em mente foi “abandonada” ou quando a teorização não foi excessiva. Pelo contrário, a ciência pré-socrática era pesada na teorização e leve na investigação, enquanto a maior parte da ciência depois de Aristóteles se inclinava para o outro lado, com a filosofia moral e os avanços científicos a aumentar em paralelo.801 Green também afirma que o progresso científico na antiguidade foi impedido por um “preconceito” contra os textos escritos, mas não há provas disso, do mesmo modo que as conferências e os estágios não indicam tal coisa no presente.802 Do mesmo modo, “a subordinação da ciência experimental à construção de um sistema filosófico” foi verdadeira durante toda a antiguidade (de facto, revertê-la foi uma característica determinante da Revolução Científica), mas o progresso continuou.803 Do mesmo modo, o facto de, como diz Green, as conclusões lógico-dedutivas serem mais fiáveis do que as empíricas é um facto muito mais conhecido até mesmo por Descartes e reconhecido ainda hoje. Embora inteiramente verdadeiro, este facto não teve qualquer efeito sobre a ciência hoje, nem o teve então.804

De forma semelhante, Joseph Ben-David repete uma das indefensáveis alegações de Sambursky, de que os antigos “cientistas construíram os seus sistemas individuais sem referência aos de outros e estabeleceram escolas rivais que, como tantas seitas religiosas, não comunicavam entre si”.805 Mais uma vez, está errado em todos os aspetos. Os trabalhos de Ptolomeu, Heron e Galeno estão cheios de referências, adopções e melhorias sobre o trabalho de numerosos antecessores nos seus respetivos campos, enquanto os escritos de Galeno estão cheios de provas de uma animada interação pública entre cientistas contemporâneos.806 Não há provas de que qualquer cientista antigo se tenha comportado de forma diferente. E embora houvesse muitas “escolas de pensamento concorrentes” sobre questões cruciais de método e epistemologia, estas não eram enclaves isolados nem mesmo dogmáticos, mas sim grupos de investigadores pouco filiados e regularmente empenhados em melhorias, intercomunicação e debate. Os cientistas mais bem sucedidos, de facto, recusaram alinhar-se com qualquer escola, mas em vez disso aprenderam e pediram emprestado a todas elas, um fenómeno de “ecletismo” que tipificou toda a atmosfera intelectual do período romano.807 Isto é bastante evidente em Ptolomeu, que fundiu as epistemologias de todas as grandes escolas num sistema protocientífico prático, em Heron, que adorava truncar dogmas sectários com demonstrações físicas, e em Galeno, que se insurgiu contra a própria ideia de escolas distintas de pensamento médico e, em vez disso, abraçou elementos de muitas escolas diferentes, criticou as outras e sintetizou uma combinação quase moderna de métodos dedutivos e empíricos próprios.808 Galeno também procurou unificar a lógica formal, desenvolvendo um sistema abrangente a partir das doutrinas de várias escolas.809.

Além disso, Heron, Ptolomeu e Galeno insistiram todos na utilização e metodologia da matemática nas ciências.810 E todos empregaram experiências sistemáticas no seu trabalho. Na sua “Pneumática”, por exemplo, Heron começa com uma teoria física, descreve experiências que estabelecem os seus princípios básicos, afirma que tais experiências refutam de forma conclusiva todos os argumentos filosóficos de poltrona contra as conclusões assim demonstradas, e passa depois a descrever uma extensa série de aplicações tecnológicas dos princípios teóricos que acabam de ser demonstrados.811

Podemos ver as mesmas tendências nos escritos científicos de Ptolemais de Cirene, no século I EC. Embora os seus livros não tenham sido preservados, as citações sobreviventes mostram-na a atacar aqueles que dividiram a sua ciência em dogmas sectários. Ela argumenta, em vez disso, que para chegar à verdade é preciso unificar os melhores elementos de abordagens sectárias concorrentes e descartar o resto. Ela critica aqueles que se baseiam na razão e na teoria e ignoram ou descontam observações, e também aqueles que apenas observam e ignoram a teoria. Defende, em vez disso, a necessidade de uma abordagem teórica e observacional unificada da harmonia (musical), integrando o empirismo com a matemática. Isto é essencialmente o que também ouvimos de Heron, Ptolomeu e Galeno, e o carácter generalizador das suas observações sugere que ela teria concordado com a extensão dos mesmos princípios às ciências.812 Assim, a tendência romana na ciência antiga não era como Ben-David afirmava, mas exatamente na direção oposta: para a comunicação, unificação e integração dos melhores elementos da ciência e da filosofia numa metodologia cada vez mais superior.

Assim, todos estes argumentos a favor do declínio não se sustentam.

Para além destes, porém, existem outros quatro argumentos que aparecem repetidamente na literatura, que pretendem provar que os antigos não tinham uma conceção do progresso científico (e tecnológico) ou eram mesmo hostis à ideia. Afirma-se frequentemente que o antigo sistema de escravatura desencorajava o interesse pelo progresso, ou que o progresso era bloqueado devido ao facto de os romanos serem impotentes contra a ideia de mudar ou interferir com a ordem natural, ou que nunca tiveram a ideia de explicar mecanicamente a natureza e os processos naturais (em vez de, digamos, organicamente ou sobrenaturalmente), ou que estavam tão obcecados com um modelo cíclico de tempo que eram incapazes de sequer imaginar o progresso ou de pensar que era possível ou que valia a pena. Tudo falso.


As secções seguintes cobrem então em detalhe “A Tese da Escravatura” (pp. 250-53), “Mudar a Natureza” (pp. 253-58), “Mecanizar a Natureza” (pp. 258-63), e “A Tese do Tempo Cíclico” (pp. 263-69). E sigo isto com um levantamento completo de “Velhos Contos de Declínio” (pp. 270-307).

Notas

775 Russo 2003: 266 (oferece várias avaliações negativas da ciência romana, nenhuma das quais é demonstrada por qualquer prova adequada: 15, 215, 231-41, 264-70, 282-86, 318; contudo, ironicamente, desafia a base de tais avaliações de outros autores: 197-202). Contrastar a avaliação de Russo com a de Chevallier 1993.

776 Um exemplo deste erro em grande escala é Stahl 1962 e 1971.

777 Para as modernas avaliações erradas de Plínio (e a sua recente correção) ver nota anterior.

778 Plínio discute Medicina no 29º livro da sua História Natural, Celso nos seus volumes mesmo sobre Medicina, ambos em latim. Os romanos não concordaram todos com Plínio, por exemplo Aulus Gellius (em Noctes Atticae 10.12) põe à prova a credulidade de Plínio, um pouco injustamente segundo Beagon 1992: 11 n. 31, mas teria havido muitos leigos da época que poderiam corrigir Plínio em muitos pontos. Do mesmo modo, Quintiliano (em Institutio Oratoria 10.1.128) queixa-se de que Séneca era um homem brilhante, mas confiava demasiado nos assistentes de investigação que por vezes o levavam ao erro.

779 Para uma avaliação relativamente negativa (e por vezes injusta) de Estrabão, ver Aujac 1966.

780 P. Green 1990: 481. Farrington 1965 tenta um argumento semelhante mas ainda mais inepto.

781 Ver Dodds 1951 e nota no capítulo 1.3 sobre a perseguição religiosa na Atenas Clássica.

782 Sobre vários absurdos entre os cientistas do século XVII ver: Russo 2003: 355-59, 363-64, 366-69, 385-88 (também, para Newton, Rossi 2001: 203-29); mais exemplos em Zimmermann 2011. Em última análise, não havia nada de mais apalermado nos antigos tratados científicos do que se pode encontrar até nas mais respeitadas autoridades da Renascença.

783 P. Green 1990: 480-81. Da mesma forma, Moses Finley reconhece que “houve melhorias de um ou outro tipo", e “aperfeiçoamentos técnicos", mas insiste que estes foram apenas “marginais” e não “melhoramentos radicais”, sem definir nem “marginais” nem “radicais” (Finley 1985: 109, 114).

784  P. Green 1990: 481. Também se queixa da falta de estatísticas formais e de “instrumentos técnicos avançados” na antiguidade (P. Green 1990: 457), ainda que nenhum deles tenha existido até depois da Revolução Científica. Do mesmo modo, para a queixa de Zilsel de que não tinham publicações periódicas (Zilsel 1945: 327). No entanto, como referido na secção anterior, os romanos devem ter tido tornos mais avançados do que sabemos. De facto, é irónico que (como também foi notado na secção anterior) Green cite antigos instrumentos de precisão de cilindros aninhados com folgas de menos de um décimo de milímetro, e no entanto pense, de alguma forma, que isto foi conseguido sem tornos de calibragem fina, que teriam sido necessários para tornear os moldes de cera com uma folga tão precisa.

785 Gwynn 1926: 146. Tal desrespeito, que ainda pode ser encontrado (abrimos com um exemplo de Russo), é justamente criticado em Nutton 2013: 13 -16 (embora apenas para a medicina, as suas observações são também relevantes para a astronomia e a física) e também desafiadas por Chevallier 1993.

786  Ver Galeno, "Sobre as Doutrinas de Hipócrates e Platão" (Corpus Medicorum Graecorum) 2.4.33 -39 e "Sobre os Usos das Partes" (De usu partium) 7.14 (= M.T. Maio 1968: 367).

787  Sambursky 1962: 253-76. Os mesmos pontos (ou reivindicações ainda mais ridículas) ainda ecoam em estudos mais recentes, por exemplo, Vernant 1983: 294-295 e 366, Reynolds 1983: 32-35, Lewis & Reinhold 1990: 2.210, e Stark 2003: 151-54 (com o mesmo material quase literalmente em Stark 2005: 17-20, embora acrescentando mais afirmações falsas sobre ciência e tecnologia antigas em 2005: 12-17). Todas elas são adequadamente refutadas pela substância do presente capítulo. Como também (mais sucintamente) em Carrier 2010 (apoiado por Efron 2009).

788 Ao contrário de Sambursky 1962: 254-55. Ver exemplos nos capítulos três e quatro aqui, e durante todo o Carrier 2016.

789  Contrariamente a Sambursky 1962: 257-60. Ver discussão abaixo e no capítulo 4.6.

790 Ao contrário de Sambursky 1962: 259-62. Ver a discussão abaixo.

791  Contrariamente a Sambursky 1962: 261-70. Ver exemplos ao longo das secções 3.1 a 3.6.

792  Contrariamente a Sambursky 1962: 270-73. Ver exemplos nas secções 3.3 e 3.4 (e mesmo em biologia: ver discussão e fontes em von Staden 1996: 88-90).

793  Contrariamente a Sambursky 1962: 273-74. Ver discussão em baixo.

794 Ao contrário de Sambursky 1962: 260-61, 274. Ver observações acima.

795  Sambursky 1962: 254-56. Sobre a relevância deste ponto, ver secção 1.1.

796  Sambursky 1963: 62.

797  Sambursky 1963: 63-66.

798  Edelstein 1963: 24-27.

799  P. Green 1990: 470.

800  P. Green 1990: 459.

801  P. Green 1990: 482. É de notar também que Green foi enganado pela seletividade medieval na preservação de textos, criando a ilusão de um interesse crescente pela filosofia moral à custa da física e da lógica que na realidade nunca aconteceu na antiguidade: ver Carrier 2016: 102-04.

802  P. Green 1990: 457. Ver a análise mais razoável de Alexander 1990 e a discussão no capítulo sete de Carrier 2016.

803  P. Green 1990: 481.

804  P. Green 1990: 457.

805 Ben-David 1991: 301.

806  Almagest de Ptolomeu, Geografia, e Harmónica são bons exemplos da sua discussão dos antecessores e da sua confiança e melhoria nos mesmos, assim como os muitos tratados de Galeno sobre anatomia e farmacologia, e também a Pneumática de Heron.

807  Ver discussão em Carrier 2016 (índice, “ecleticismo”) e secção 3.2 acima. Para mais discussões sobre o ecleticismo de Galeno e Ptolomeu, ver: Gottschalk 1987: 1164-71. Para Ptolomeu: DSB 11.201-02 (em s.v. “Ptolomeu”). Para Galeno: Hankinson 1992. Para Heron: Tybjerg 2005: 214-15. Galeno descreve e defende especificamente o ecletismo em "De Affectibus et Erroribus Animae" (Das Afeções e Erros da Alma) 1.8 and 2.6-2.7 (= Kühn 5.42-43 e 5.96-103) e Séneca faz efectivamente o mesmo em "Epistolae morales" (Cartas Morais)) 33. Ver também o credo “eclético” defendido em Celso, "De Medicina" (Sobre a Medicina) pr.45-47.

808  Para a epistemologia científica de Ptolomeu: Huby & Neal 1989; Long 1988: 176-207; A.M. Smith 1996: 17-18; Barker 2000. Para a epistemologia científica de Galeno: Frede 1981; Walzer & Frede 1985: xxxi-xxxiv; Iskandar 1988; J. Barnes 1993; Hankinson 1988: 148-50, 1991a: xxii-xxxiii e 109-10, 1991b, e 1992; M.T. Maio 1968: 45-64. Para um resumo mais antigo de ambos: Edelstein 1952: 602-04. "De Criterion" (Sobre o Critério) de Ptolomeu e De Experientia Medica (Sobre a Experiência Médica), de Galeno são exemplos proeminentes, assim como "De Sectis pro tironibus" (Sobre as Seitas, para Principantes), e "Adumbratio empiricismi" (Esboço do Empiricismo), de Galeno (para os três ver traduções e discussão em Walzer & Frede 1985, esp. xxxi-xxxiv), bem como a sua síntese de epistemologias em "In Hippocratem et Platonem Opera" (Sobre as Doutrinas de Hipócrates e Platão) 9, mas muito mais importante foi o tratado de Galeno sobre "Demonstratio" (Demonstração), que foi especificamente dedicado ao método científico, e no entanto os escribas medievais não tinham qualquer interesse em preservá-lo (Nutton 1999: 166, §P.82, 3-5 lista fontes contendo fragmentos existentes, e Hankinson 1991b tenta reconstruir o método científico de Galeno a partir das suas obras existentes). Sobre o interesse relacionado de Galeno em matemática e ciências e métodos matemáticos, ver discussão no capítulo sete de Carrier 2016 e exemplo na secção 3.6.VI. Para exemplos do seu compromisso com um empirismo quase moderno ver Galeno, "De moto cute" (Sobre o Método de Cura) 1.4, 2.7, 3.1, e 4.3 (= Kühn 10.31, 10.127, 10.159, 10.246) e "De Affectibus et Erroribus Animae" (Sobre os Efeitos e Erros da Alma) 2.3 (= Kühn 5.66-69 e 5.80-90). Que a epistemologia de Galeno foi influente no desenvolvimento do método científico moderno é argumentado em Crombie 1953: 27-28, 40- 41, 74-84, e Walzer & Frede 1985: xxxiv-xxxvi. Penso que também se poderia argumentar o mesmo de Ptolomeu (por exemplo, considerar as suas antecipações da Rasoira de Occham em Hypothesis planetaria (Hipóteses Planetárias) 2.6 e Almagest 13.2).

8090 Ver Kieffer 1964.

810  Ver capítulo 2.7, discussão no capítulo 1.2.III, e discussão relevante sobre Galeno no capítulo sete do Carrier 2016.

811  Heron, "Pneumatica" 1.pr. (ver discussão em Argyrakis 2011). Heron também implica aqui que tinha demonstrado outros princípios relevantes no seu tratado sobre relógios de água, que infelizmente está perdido. Padrões semelhantes são visíveis em várias obras de Galeno e Ptolomeu (ver o final das secções 3.2, 3.3, e 3.4 para exemplos).

812 Ptolemais, "De differentia Inter Aristoxenos et Pythagoreos" (Sobre a diferença entre os aristoxénios e os pitagóricos), frg. 3, citado em Porfírio, "Comentário sobre a Harmonia de Ptolomeu" 25.3-26.5. Ver também a citação de Ptolemais no capítulo 2.7 e as fontes de Ptolemais em Carrier 2016 (índice).

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