A Barraca de Borscht da Babushka

A moralidade da Guerra Defensiva

Tradução de Cosmopolitanism and Defensive Warfare, do blogue stderr de Freethought Blogs

The Morality of Defensive War, Cécile Fabre; Seth Lazar, Oxford : Oxford University Press, 2014.

Há um livro ao qual tenho regressado repetidamente, há anos. Fascina-me, porque expõe muitos problemas filosóficos que eu nunca tinha considerado.

[Na minha mente, este livro faz conjunto com outro livro que irei comentar no meu próximo post. É exatamente o que o título diz: um grupo de filósofos que se preocupam com a moralidade analisa a moralidade da guerra defensiva. É muito mais complicado do que se poderia esperar.

Em primeiro lugar, vamos eliminar a parte óbvia: a guerra ofensiva é imoral, ponto final. Envolve um Estado (geralmente) a invocar a sua energia coletiva, e a fazer violência a outro Estado; isso envolve inevitavelmente os cidadãos do Estado sob ataque, que são considerados inocentes de qualquer ofensa que justifique o ataque. Justificar uma guerra agressiva é fútil, a menos que o atacante saia completamente do plano moral para o niilismo e diga “Eu faço isto porque posso”. Essa é a justificação da não-justificação. Ainda é subtil: digamos que o Estado atacante ataca apenas os militares do defensor; esses soldados podem ser coletivamente considerados “os militares”, mas são também seres humanos individuais, entidades morais que devem ser consideradas como tendo direitos e desejos. E os seus desejos não incluem certamente o de serem atacados com artilharia pesada. Os autores não gastam tempo significativo (algumas frases) com a guerra ofensiva, porque a moralidade da guerra ofensiva é óbvia para qualquer pessoa com um sentido moral.

Agora que o fiz, invoquei “senso moral” ‒ aquela coisa em que as pessoas que acreditam na moralidade normalmente acabam por confiar como o seu discriminador do que é certo e errado. Vejo o “cálculo moral” do objetivista* como um subterfúgio, claro, porque mesmo uma criança pode observar que nenhum cálculo moral é aplicado eficazmente em qualquer situação. Quando se examina as dimensões morais de praticamente qualquer ação, elas desmoronam-se num monte de “se”, “e”, ou “mas”. Isso, com efeito, é o que este livro é: um monte de “se”, “e”, e “mas”. Por exemplo, temos de assumir a questão de saber se uma guerra preventiva ou uma “guerra defensiva” é ou não um conceito válido, ou se é uma contradição nos seus termos. Abordo isso na minha peça sobre a atitude de Sam Harris para com Israel [stderr] e defendo que a “guerra defensiva” é simplesmente uma cobertura de treta sobre a simples e velha guerra ofensiva. Há pessoas que se preocupam com estas coisas: Agostinho expôs nomeadamente as suas ideias de guerra justificada, para que os cristãos pudessem justificar matar-se uns aos outros em massa, apesar das diretivas do seu soberano divino. Surpreende-me que Agostinho seja considerado um grande filósofo, mas é.

Precisava de algumas imagens alegres!

A ideia de uma “guerra justificada” (Jus in Bello) é que se formos atacados, temos o direito de nos defendermos. Se vires uma tremenda injustiça a ser feita, podes intervir defensivamente em nome das vítimas. E, se houver um bando de protestantes, pode atacá-los e matá-los, porque jesus. [Acabo de inventar esta, só para ver se estava acordado] Então, temos de invocar o cálculo moral dos objetivistas: dizer algo é “injusto” ou não depende da nossa capacidade de fazer um juízo moral, e geralmente as pessoas voltam a cair no “cálculo moral” ‒ pesando as nossas opiniões sobre o que é o maior bem para o maior número, etc. Muitas vezes aqui, e nos comentários, tenho ridicularizado o objetivismo/utilitarismo como uma treta, por isso vou recapitular o meu ponto de vista: “cálculo moral” é impossível porque nos obriga a julgar as nossas opiniões sobre o valor moral do que pensamos que pode acontecer e a nossa opinião sobre a situação atual ‒ tudo isto é completamente ilusório porque são apenas opiniões. De facto, vou ao ponto de dizer que os utilitaristas estão a tentar enganar-nos quando falam de “cálculo moral”, tentando soar como se houvesse algum tipo de processo científico para ponderar o valor das nossas decisões. Na melhor das hipóteses, eu digo, que é tudo uma farsa ‒ estamos a reificar as nossas opiniões em princípios morais ‒ ou seja: estou com Nietzsche, argumentando que a ideia de qualquer um de “certo” e “errado” é simplesmente “o que eu gosto” versus “o que eu não gosto”. Para ser justo, se olharmos para as coisas grandes, existe frequentemente um nível de concordância surpreendente, por exemplo “Quem aqui pensa que é moral para mim espetar-lhe este garfo na testa?” Mas de repente esse acordo desmorona-se se eu perguntar: “Quem aqui pensa que é moral para mim espetar este garfo na testa do Manel?"

Os utilitários são facilmente descartados perguntando-lhes simplesmente: “Mostrem o vosso trabalho, este ‘cálculo moral’, relativamente a qualquer questão complexa”. Experimente. Peça-lhes que o escrevam, como se de um problema de cálculo se tratasse. E descobrirá que eles voltam a tagarelar sobre “o maior bem para o maior número” como se fosse uma espécie de mantra. É facilmente descartado ao apontar que a sua ideia de “o que é bom” incorpora a noção de “bom”; é um argumento circular básico.

Esta babushka na sua barraquita "Aleksei e Svetlana" parece não vender borscht, mas sim vobla, peixe salgado usado como aperitivo. Mas foi a melhor barraca de alimentos russa que consegui encontrar na Web...

Tudo isto é relevante para a guerra defensiva, porque temos uma situação em que há um bando de pessoas más a fazer coisas más, e perguntamo-nos: “o que podemos fazer para as impedir? Um dos grandes problemas das pessoas más é que elas não param para refletir sobre o seu cálculo moral ‒ espetam-te só uma lança e avançam. Assim, a guerra defensiva é a questão de “como nos defendemos coletivamente, sem termos de fazer um conjunto complexo de argumentos morais que o nosso atacante vai ignorar, de qualquer forma?”

Se esteve acordado nos últimos quatro meses, provavelmente estará a pensar na situação entre a Rússia e a Ucrânia. Independentemente de qual a provocação em que a Rússia diz que a Ucrânia se envolveu, é difícil para eles justificar moralmente o ataque aos cidadãos da Ucrânia. Em princípio, poderiam ter/terão de alguma forma identificado e atacado o governo da Ucrânia, mas isso é um conceito nebuloso. Por exemplo, a guerra da Rússia contra o governo da Ucrânia inclui justificação para atacar e matar trabalhadores postais ucranianos? De repente estamos perdidos num labirinto de argumentos: e se o trabalhador dos correios estiver a entregar peças de drones que foram encomendadas através da Internet, que serão utilizadas para fazer drones que lançam bombas sobre os russos? Como sabemos se o trabalhador dos correios está a entregar peças de drones ou dildos? A resposta, do ponto de vista do agressor, é “seja o que for”. É por isso que eles são os maus da fita.

Qual é a quantidade justificável de força para um defensor utilizar?

A resposta óbvia, na história, é “toda a que tenhamos, porque se perdermos, vai ser pior”.

No livro, David Rodin escreve uma peça provocadora de pensamento chamada “O Mito da Autodefesa Nacional”. Não posso citar as cerca de 8 páginas, por isso resumo (de forma justa, penso eu):

Ele conta a história da aquisição da Cadbury Corporation pela Kraft Foods, inc. As diferenças culturais de empresa entre a Cadbury e a Kraft são acentuadas: a Kraft tem tudo a ver com ganhar o máximo de dinheiro possível e a Cadbury vê como sua missão fazer ovos de chocolate deliciosos cheios de creme. A Kraft começou imediatamente a diminuir no uso pela Cadbury de chocolate de maior qualidade e mais caro, porque era mais rentável. Agora, Rodin faz a pergunta: “Porque não é permitido que a Cadbury se defenda militarmente?"

Passo a citar diretamente:

"Michael Waltzer argumenta, famosamente, que quando uma comunidade política com as suas tradições, história, língua e cultura é confrontada com a destruição às mãos de um inimigo, então está numa situação de 'emergência suprema', na qual as restrições normais à defesa admissível são suspensas. Waltzer argumenta especificamente que, quando necessário, para evitar uma emergência suprema, um Estado tem o direito de se envolver em actos de terrorismo de massas ‒ ou seja, matança intencional em massa de civis inocentes. Esta defesa moral do terrorismo (e Waltzer, para seu crédito, é explícito e honesto na utilização desta terminologia) é notória em alguns círculos, uma vez que viola proibições profundas sobre o assassinato intencional de inocentes que há muito é aceite pela teoria da guerra justa. Mas é suficientemente corrente para ter sido aceite por muitos dos principais teóricos, nomeadamente John Rawls em The Law of Peoples."

A ideia de Cadbury se envolver em terrorismo pode inicialmente parecer um absurdo, até nos lembrarmos que a sabotagem há muito que é uma das ferramentas do movimento laboral contra a opressão corporativista: quebram-se os teares ou estraga-se-se certos componentes, etc., para frustrar os objetivos do opressor. Vá lá, coma o seu ovo de chocolate, não há lá cianeto ‒ eles só conseguiram pôr as mãos em veneno dos ratos. Obviamente, a Kraft não está a ameaçar alinhar contra a parede os chocolateiros da Cadbury e matá-los, mas para todos os efeitos, está a ameaçar as suas vidas e as das suas famílias da mesma forma.

Vou deixar esse ponto, agora, porque continua por resolver para mim. Acho absurdo até tentar perceber esse tipo de coisas, quando a realidade é que os russos estão a disparar artilharia pesada contra cidades cheias de civis, com conhecimento e intenção. Parece tolice argumentar “cálculo moral” quando é tão óbvio: os ucranianos têm razão em retaliar contra os russos da forma mais horrível possível; quanto mais horrível, melhor. Waltzer tinha razão em usar a palavra “terrorismo” porque é isso que é: quer assustar os russos, para que eles vão para casa chorar nos braços das suas mães porque temem o próprio céu. Diríamos que os ucranianos seriam justificados se começassem a bombardear as cidades russas? Curiosamente, o comentário sobre isso é geralmente, “isso seria uma escalada...” e não “isso seria imoral...” Mas, a sério, como se pode explodir a Barraca de Borscht da Babushka em retaliação pelo que os russos têm feito a Kyiv? A babushka não ajudou ativamente a invasão, fornecendo-lhe o borscht ‒ ela pode até opor-se à guerra! Rebentar com ela é rebentar com um aliado.

Este é o próximo ponto que os autores do livro aprofundam, que resumirei como: a retaliação coletiva é punição coletiva, e não é moral em circunstância alguma. Se a babushka arranjar um trabalho a carregar foguetes para os lançadores Grad, então, façam favor, larguem alguma artilharia em cima dela, mas enquanto estiver a vender borscht ela é uma civil, não uma combatente. Toda a teoria da guerra justa depende desta má ideia, nomeadamente que as nações são um coletivo e são agentes morais. É a “Rússia” que é má, não os soldados russos que andam por aí a trocar fogo de artilharia com os residentes da Ucrânia. Dito de outra forma: foi o 11 de Setembro um ataque militar justificável contra a infra-estrutura económica de um inimigo que tentava dominar o Médio Oriente há décadas, ou foi um ataque contra civis inofensivos? Causou enormes prejuízos económicos contra o grande inimigo, os EUA e os contribuintes que financiam as guerras americanas em todo o mundo. Noam Chomsky já fez esta observação, muitas vezes e ao longo de muitos anos: se for americano e pagar impostos, está a apoiar os projetos imperiais dos EUA. A questão é agora uma questão de grau: é apenas um contribuinte (vendedora de borsch) ou um sardaukar** imperial que usa uniforme, anda armado e dispara contra civis?

Se o direito à independência do nosso Estado se baseia no valor moral da participação numa comunidade autodeterminante, então porque é que a participação noutras formas de comunidade autodeterminante não gera direitos comparáveis?

Há três respostas possíveis a este enigma. Primeiro, podemos conceder às comunidades não estatais, como a Cadbury, direitos à força defensiva comparáveis aos detidos pelos Estados. Em segundo lugar, podemos dar conta das diferenças morais relevantes entre comunidades estatais e não-estatais. Terceiro, podemos rejeitar o direito à autodefesa nacional através da guerra.

Sei que Rodin está a fazer uma redução ad absurdum, mas não devemos esquecer que ‒ a certa altura ‒ a Pepsi Cola, Inc. tinha a 6ª maior marinha do mundo. [bi] Portanto, talvez isso não seja tão engraçado. A situação era que a Rússia comprou muita Pepsi (não Coca-Cola!) e tinha um défice de dinheiro, por isso pagou à Pepsi:

"Assim, os russos fizeram o que qualquer país faria em tempos desesperados: Negociaram com a Pepsi uma frota de submarinos e barcos por um grande lote de refrigerantes. O novo acordo incluía 17 submarinos, um cruzador, uma fragata e um destroyer."

O ponto final inevitável do capitalismo empresarial é que terão exércitos privados e marinhas para controlar o trabalho. Lembre-se de Blair Mountain***. Mas, eu divago. Mais ou menos: as empresas mineiras de carvão tinham o direito moral de se defenderem metralhando trabalhadores em greve? Afinal de contas, eram uma ameaça existencial para a empresa. [stderr]

Cécile Fabre escreve:

“Pareceria, desse breve esboço, que o cosmopolitismo não pode acomodar a opinião de que uma comunidade politicamente autodeterminante pode travar uma guerra de autodefesa. Pois, no tribunal da moralidade cosmopolita, não é claro por que razão os direitos de soberania detidos pelos cidadãos do país V (doravante, cidadãos) devem promover o seu bem-estar a tal ponto que justifique a morte de combatentes individuais do país A, dado que as contribuições individuais dos combatentes para a perda de soberania do V parecem demasiado marginais para justificar a sua morte deliberada.”

Por outras palavras, se examinarmos os conflitos de estados para tentar compreender as dimensões morais do que se está a passar, descobrimos uma papa incoerente. [Descrição minha].

Os filósofos morais parecem ficar assustados quando se fala em vingança.

É por isso que queria discutir este tópico: descobrimos uma papa incoerente, que equivale a pouco mais do que “vou fazer o que quero” e um verniz de auto-justificação.

Quase intitulei esta peça “Em Defesa do Niilismo, II” porque se me tornou impossível ver estes assuntos através de outra coisa que não seja a lente de um ceticismo extremo. Simplificando: estas pessoas que falam de “moral” não têm, claramente, a porra de uma ideia do que estão a falar. Todo este livro, tomado no contexto da guerra na Ucrânia (ou qualquer outra guerra) é uma grande reductio ad absurdum para a ideia de que podemos raciocinar sobre moralidade, ponto final. Parece-me que o melhor que podemos fazer é mentir a nós próprios e aos outros e dizer “isto está certo” ou “isto está errado”, quando na realidade apenas queremos dizer “não gosto disso”. Note-se que os filósofos tiveram milhares de anos para resolver este assunto, e o utilitarismo é basicamente o melhor que conseguiram arranjar. Fraco.

A guerra é um espelho no qual vemos o reflexo do vazio das nossas crenças no certo e no errado.

Não acrescentei este livro à minha lista de livros recomendados, nem o consideraria este texto uma “crítica” do livro. Há anos que ando de um lado para o outro (seriamente) e raios me partam se encontro nele algo que inspire mais do que um grande “que porra é esta”? Isso não quer dizer que seja um mau livro ou que os autores não façam um bom trabalho de raciocínio bem teso ‒ eles fazem-no; só que me parece que destrói completamente qualquer ponto em que eu possa ter tido de acreditar em qualquer um destes disparates morais.

Escrevi isto, salvei, verifiquei as notícias e vi que os russos acabaram de alvejar com mísseis um centro comercial. Porque é que a Barraca de Borscht da Babushka não é agora um alvo?


O utilitarismo é uma família de teorias consequencialistas, defendida principalmente por Jeremy Bentham e John Stuart Mill, que afirma que as ações são boas quando tendem a promover a felicidade e más quando tendem a promover o oposto da felicidade. Filosoficamente, pode-se resumir a doutrina utilitarista pela frase: Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar (princípio do bem-estar máximo) (Wikipédia)

** Sardaukar: soldado de elite do império na saga de ficção científica Dune.

*** A Batalha de Blair Mountain, foi a maior revolta laboral da história dos Estados Unidos, sendo o maior conflito armado interno desde a Guerra Civil Americana. O conflito ocorreu em 1921 no Condado de Logan, localizado no estado da Virgínia Ocidental, sendo parte das guerras do carvão, uma série de conflitos que irromperam nos Apalaches no início do século XX por questões laborais. Cerca de 100 pessoas perderam a vida e muitos outros saíram feridos dos confrontos (Wikipédia).

 

 

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