Vlad Vexler e a Rússia de Putin

Jake Broe é um dos canais do YouTube que eu sigo sobre a Guerra Russo-Ucraniana. Vlad Vexler é outro. Se o primeiro mostra grande qualidadde na informação corrente sobre o conflito, o segundo é mais importante pelo conhecimento político sobre as entranhas do regime putinista. Vlad Vexler nasceu na moribunda União Soviética, migrou ainda antes da queda para Israel e depois para o Reino Unido, onde se formou em filosofia política. As suas análises da sociedade russa e do projeto de poder de Putin são decisivas.

Este texto é uma tradução parcial da transcrição da entrevista de Jake Broe a Vlad Vexler, no canal do primeiro. Abreviei ou apaguei os coloquialismos da linguagem falada, para mais facilidade de leitura. Acrescentei também os subtítulos. Aconselho vivamente que frequentem estes dois canais.

Vlad Vexler

A propaganda soviética e a de Putin

Jake BroeHá já bastante tempo que se tem concentrado nos problemas com a Rússia e especificamente Vladimir Putin. O vídeo que fez, que mais me agradou até agora, contrasta a diferença entre a velha propaganda soviética e o novo estilo de propaganda de Putin a partir de Moscovo. Para o nosso público, que ainda não viu esse vídeo, pode explicar a diferença entre a propaganda do Kremlin de há 30, 40 anos atrás e a propaganda do Kremlin de hoje?

Vlad Vexler — É uma diferença bastante básica. A propaganda soviética tentava persuadi-nos de um quadro alternativo da realidade, tentava pintar esse mundo e convidava-nos a acreditar nele. Agora, no final do projeto soviético, ninguém podia acreditar e era uma espécie de jogo, mas a ideia continuava a ser que havia algum tipo de visão ideológica e essa era a coisa certa em que se devia acreditar. Quando estava na escola, tinha de dizer o quanto gostava de Lenine. Gostava mais de Lenine do que dos meus pais, pelo que essa era a história. Eles tentavam persuadir-nos de uma espécie de fantasia, uma fantasia histórica de libertação de problemas sociais e económicos através do marxismo-leninismo.

A propaganda de Putin não tenta persuadir-nos de uma realidade alternativa na qual se deva acreditar. Ela tenta manipular o nosso sentido da realidade. Tenta saturar o ambiente informativo com imagens incompatíveis da realidade e o objectivo não é persuadir-nos de nada, não é iniciar-nos nalgum tipo de mobilização política, nalgum tipo de visão. O objetivo é despolitizar-nos, fazer-nos sentir: Bem, isto é demasiado complexo para eu me envolver. Para nos fazer sentir que talvez não exista uma verdade fiável sobre nada.

A propaganda soviética era clara: esta é a verdade e se não acreditam, estão errados. A propaganda de Putin não tenta dizer-nos que temos aqui a história, isto é o que devemos acreditar. A propaganda de Putin tenta dizer-nos: Olhe, este é um mundo muito complexo e há alegações e contra-alegações. Depois tenta bombear informação para nós de todas as direções. A ideia é que simplesmente desistamos da política. Essa é a principal aspiração e tem funcionado de forma, tragicamente, muito eficaz, até há poucos dias atrás, quando surgiu o primeiro assunto, na minha experiência, em que a propaganda começou a falhar. Foi a mobilização, porque estavam a tentar saturar o ambiente informativo com mensagens incompatíveis sobre mobilização. Normalmente isso confundiria e pacificaria as pessoas, mas nesta ocasião pareceu-me que as pessoas ouviram: Vão levar-nos embora e vamos morrer ou não nos vão levar, não vamos morrer? Vamos morrer, não vamos morrer? Então ela fez o oposto: na realidade deixou as pessoas ansiosas. Fez com que as pessoas sentissem o oposto do sentimento que se desejava, que era levá-las a voltar para o sofá.

Mas isso não significa que a máquina se tenha quebrado. A máquina de propaganda ainda está intacta, apenas teve um falhanço.

JBComo americano, penso que tenho sentido este aumento de confusão e caos, especialmente desde 2014, depois de Putin ter anexado a Crimea e a primeira ronda de sanções ter sido imposta à Rússia. Penso que é nessa altura, 2014, que Putin já tinha decidido que ia atacar toda a Ucrânia. Eles realizavam estes exercícios todos os anos na fronteira, acumulando centenas de milhares de soldados, jogos de guerra, preparativos. A paz nunca foi uma opção. Putin, na minha opinião, sempre esteve a ir para Kiev. Eles queriam o controlo de todo o país. Então, com o aumento deste novo estilo de confusão, desta propaganda que vinha do Kremlin, o que deveriam estar a fazer os governos e os meios de comunicação ocidentais? Como deveriam estar a responder a isso? Que talvez não estejam a responder eficazmente, até este ponto?

VV — Penso que a primeira coisa é, compreender que é real, como funciona, mas também tentar vê-la pelo que é, não torná-la maior do que ele é. Penso que, desde 2014, de uma forma muito autoconsciente, tem sido a política externa russa a desestabilizar as democracias que participavam no regime de sanções contra a Rússia e a desestabilização era o objetivo, o caos era o objetivo, a perda de confiança, a perda de fé na democracia era o objetivo. O objetivo nunca foi tomar partido. É importante compreender que este tipo de intervenção russa é completamente desprovido de lealdade.

Se lhes convinha apoiar Le Pen ou Trump durante algumas semanas, fariam isso. Se lhes interessa então apoiar Biden (de facto por alguma razão bizarra), também o farão. Portanto, não devemos pensar demasiado nos russos como sendo uma espécie de ligação e apoio a candidatos políticos particulares, embora por vezes apoiassem alguém durante um período de meses, mas isso pode sempre mudar. Acho que, tecnicamente, para além de lidar com o que eles estão a tramar, há uma importante lição política sobre como devemos responder. É compreender qual é o seu principal objetivo. O objetivo é provavelmente que nos irritemos com a sua interferência. O que eu gosto de dizer é que o objetivo da interferência não é que a interferência nos cause danos, mas que semeie o pânico, o conflito e a confusão e que é a nossa reação à interferência que prejudica a nossa democracia.

O meu conselho em torno disto é que façamos o contrário do que fazemos frequentemente, que tentemos despolitizar a nossa forma de compreender a interferência russa nas nossas sociedades. Isso é realmente, realmente muito difícil para nós, porque temos guerras culturais no Ocidente, entre pessoas que minimizam a interferência russa e, na verdade, até dizem que não é real e pessoas que poderiam ter uma visão muito maximalista da mesma, o que pode exagerar o seu papel e prejudicar-nos dessa forma também, porque o efeito disso muitas vezes é que esquecemos que alguns dos problemas com que estamos a lidar são de origem caseira. Este é também um ponto importante. Os russos raramente tentam semear problemas completamente novos. Eles prestam atenção ao que já nos divide e depois tentam maximizar isso. Assim, é o início de uma conversa sobre como respondemos à forma como eles têm interferido, à forma como vão tentar continuar a interferir nas nossas democracias. Não queremos dizer que tudo o que está errado com a nossa democracia é uma expressão de interferência estrangeira maligna, por um lado. Por outro lado, queremos reconhecer a interferência quando ela é real. Queremos responder a ela e proteger-nos dela. Acima de tudo, queremos não deixar que ela nos divida. Esse é um desafio muito difícil.

Jake Broe

Os russos e a mobilização

JBMencionou a mobilização, e como esta tem tido uma mudança dramática na forma como os russos comuns estão a responder ao seu governo. Parece que, pela primeira vez em 20 anos, Vladimir Putin não parece ser invencível para o largo espectro do seu povo. Pode falar sobre como isto está a afetar o povo russo e a sociedade russa desde que a mobilização foi anunciada?

VV — A minha sensação é que está a afetá-los como se houvesse alguém que apenas acordasse, abrisse um olho e depois voltasse a dormir. Algo irreversível mudou, mas fundamentalmente eles ainda estão a dormir. Porque é que digo que, apesar de estarmos a ver protestos por todo o país, estamos a ver algumas incinerações de centros de alistamento? Digo isto porque é quase impossível compreender, para uma pessoa de fora, o quão profundamente despolitizada é essa população. Eles são tão despolitizados que temos de ser claros, que o problema com 50 a 65 por cento dos russos, não é que eles estejam em negação do que está a acontecer na Ucrânia, porque não têm os factos ou porque são ignorantes. Estão em negação sobre isso porque há algo que não conseguem enfrentar. Há algo com que não conseguem lidar.

O que é isso, porque está isso a acontecer? Penso que o que se passa é que há uma espécie de acordo que fizeram com o seu governo durante os últimos 20 anos. Eles construíram realmente as suas vidas em torno disso e o acordo é: vocês fazem política, nós vamos externalizar a política para vós, Sr. Putin ou o regime Putin, e vocês, em troca, deixem-nos subsistir, e, em boa medida, ficam fora das nossas vidas privadas. Este é um pensamento que vai neste sentido. No final, é seguro, não há problema em externalizar a política e pensar na política como algo que se passa numa faixa paralela, num universo paralelo. Temos lutado arduamente para tirar o governo das nossas vidas através do período soviético. A experiência soviética é perene, uma experiência de pessoas que tentam tirar um estado incómodo e ameaçador das suas vidas durante décadas. As pessoas têm vivido isso e há uma memória disso através das gerações.

Depois, vem o regime de Putin e este está assente em duas coisas. A segunda coisa é intensificar este sentimento de pessoas feridas e ressentidas com o Ocidente, mas a principal coisa que se propõe fazer é despolitizar a população, para dizer: continuem com as vossas vidas, vamos fazer política, vai ser este o acordo. E as pessoas começaram a sentir-se seguras em relação a esse acordo. Acostumaram-se a esse acordo. O que estão a descobrir é que esse acordo, que pensavam ser seguro, se transformou em catástrofe, se transformou em desastre e não conseguem enfrentá-lo.

É quase como se tivéssemos descoberto que estamos a viver com alguém que é uma pessoa realmente má. Leva muito tempo a acordar para isso. Portanto, o que eles não são capazes de enfrentar não é Bucha. O que eles são incapazes de enfrentar é que a sua ideia de acomodação com a política e o seu sentido de normalidade foi completamente esmagada. Foi esmagada de forma tão brutal que é muito difícil enfrentá-la. Penso que vai ser preciso muito para que esse segmento da população a que chamo 50 a 65 % acorde. O resto da população, ou é a favor da guerra ou contra ela, mas essa parte do meio é só absolutamente, profundamente despolitizada. O que estamos a ver neles é, diria eu, um abrir de olhos e vão voltar a dormir, mas vão acordar de novo em breve e abrir um olho de novo, e depois talvez o mantenham aberto um pouco mais e depois continuem, e daí em diante.

Em termos de outros grupos da sociedade, em termos das elites civis, há milhares de pessoas que trabalham para o regime de Putin, de forma bastante direta, em vários papéis. A minha sensação é que eles estão numa espécie de sono e entorpecimento suicida. Não conseguem pensar e não se estão a ouvir a si próprios, mesmo quando falam. O meu sentimento em termos de quem fala com eles, de quem é possível obter algum feedback, é que estas conversas se desenrolam assim: Oh, não sei, não consigo saltar deste barco. Não tenho vida no ocidente. Bem, de qualquer forma agora vou ter problemas se for para o ocidente e talvez isto passe, talvez não passe, mas não há nada que eu possa fazer. Não há nada a fazer. Há uma situação de ficarem paralisados pelos faróis.

Depois, em termos do tipo de super elite, as pessoas que estão a um ou dois círculos de Putin, o meu sentido é que ainda ninguém está a contemplar um golpe, mas todos eles estão a preparar estratégias e a preparar-se para um futuro pós-Putin. De facto, diria que algumas pessoas em diferentes regiões da Rússia começam, pela primeira vez, a contemplar não apenas o futuro pós-Putin, mas um futuro pós-estado russo na sua forma atual.

O projeto de Putin

JBNum dos seus vídeos utilizou Estaline como exemplo, dizendo que assim que Estaline morreu, só demorou alguns anos para que o seu antigo círculo interno recuasse completamente nas suas posições e invertesse algumas das suas políticas, o que era impensável enquanto Estaline ainda estava vivo. Assim, para o atual círculo de Putin, já estão a planear um mundo pós-Putin que pode ser drasticamente diferente, com políticas diferentes do que é atualmente. Isso dá-me um pouco de esperança. Agora mencionou que o objetivo de Putin nos últimos 20 anos tem sido o de despolitizar o público em geral. Ele não quer que as pessoas prestem atenção, não quer que as pessoas se envolvam com o estado. Por isso, agora que exige que sirvam nas forças armadas, anunciou esta mobilização, como é que Putin consegue que estas pessoas apoiem ou se envolvam ou participem politicamente para apoiar esta guerra? O que é que os seus conselheiros lhe dizem, no que diz respeito ao envio de mensagens ou à elaboração de estratégias, para que o público russo em geral participe na guerra neste momento?

VV — Penso que ele está a falar sozinho. Penso que é chocante como está isolado. Há muitos jornalistas de segunda categoria que podem dizer que há vários tipos de intelectuais por detrás do projeto de Putin e recentemente, com o ataque à bomba na Rússia, Alexander Dugin, o "filósofo" tem estado nas notícias. A verdade é que a única pessoa de quem Putin é ideologicamente próximo é um tipo chamado Yuri Kovalchuk, que é banqueiro e é o único amigo de Putin neste momento. Quando se trata de pensar sobre estas fantasias quase imperialistas, não sabemos exatamente do que estão a falar, porque os círculos se contraíram tanto. Se voltarmos a antes da pandemia e formos a Moscovo, é possível falar com alguém que tenha falado com alguém que tenha falado com Putin e ter uma noção do que ele está a pensar. O que é chocante agora é que há centenas de pessoas que normalmente têm uma noção do que ele está a pensar. Quando lhes perguntamos, elas dizem: Não sei, não tenho acesso, não tenho ninguém a quem perguntar. Portanto, há uma verdadeira sensação de contração. Ninguém sabe exatamente o que está a ser discutido ou com quem está a ser discutido, mas só consigo pensar numa pessoa que é significativamente um conselheiro de Putin: é Kovalchuk. Para além disso, ele está perigosamente isolado.

Penso que o que ele está a tentar equilibrar é a questão de continuar com esta política de manter a população desmobilizada, mas depois precisa de mobilizá-la. São exigências completamente incompatíveis. O que vimos quando a guerra começou foi o que eu chamo um tipo de viragem fascista que a Rússia tomou. Se quiser, uma viragem totalitária, porque o fascismo precisa de 7 ou 11 definições antes de prosseguirmos com essa conversa. Vamos usar a mais ampla. A Rússia teve uma viragem totalitária, digamos assim, porque o que aconteceu quase da noite para o dia não foi só que todos os meios de comunicação social independentes que restavam se foram, mas que houve tentativas de unificação — foram curtas, fragmentadas e limitadas, mas houve tentativas de unificar o povo com o regime e juntá-los e criar um grau de participação. Houve um aprofundamento inacreditavelmente feio da intervenção política no sistema educativo. O que esse regime está a fazer às crianças é absolutamente repugnante neste momento. A crianças de sete anos estão a ser ensinadas as ilusões pessoais de Putin sobre a Ucrânia, sobre a história mundial, sobre a história russa. As crianças estão a ser obrigadas a organizar-se nestes horríveis sinais de Z. A FSB tem vindo a inserir-se nas burocracias universitárias. Mas essa reviravolta só foi parte do caminho.

Eu diria que essa viragem totalitária da Rússia chegou aos 20, 25% e esse tipo de totalitarismo praticamente parou e continuou, talvez à deriva numa direção totalitária apenas subindo um ponto percentual durante alguns meses.

Putin precisa de decidir: vai tentar levar isto mais longe ou está mais interessado em manter a sua população despolitizada. Claro que quer o melhor de ambos os mundos, mas terá de tomar decisões muito difíceis. Viu que com a mobilização não o queria fazer agora. Ele não é tolo e compreendeu que era necessário mobilizar politicamente mais a população antes de fazer a mobilização militar. O meu sentido é que se as coisas estivessem a correr bem, ele teria gostado de mobilizar daqui a um ou dois anos. Penso que ele poderia ter gostado de mobilizar um ano após ter assumido o controlo total da Ucrânia, o que é revelador, não é?

É assim que estou a pensar no projeto de Putin. Não se trata apenas da Ucrânia. Será sobre a Ucrânia porque eles vai detê-lo, mas não se tratava da Ucrânia para começar. É um caminho maior de escalada. Ele está a tentar equilibrar, tornando a população russa em cidadãos fascistas ou impedindo-os de serem cidadãos. É um equilíbrio muito frágil e ele está a ter de tomar decisões que não queria. É aí que está e vai continuar a improvisar, parece-me, mas penso que a tendência é mais na direção totalitária até que tudo estoire. Ele tem medo disso, porque quando pede aos russos para se tornarem cidadãos e deixarem de ser uma população, há todas as hipóteses de os seus cidadãos antes sem expressão dizerem: Adeus, Sr. Putin, não vamos ser cidadãos fascistas leais. Esse é o dilema em que ele está preso.

Despolitização ou fascismo

JBPutin teve este comício de anexação há alguns dias e sempre que Putin tem um destes comícios há sempre especulações: o que é que vai dizer o que vai anunciar? Houve especulações de que poderia declarar formalmente guerra, ou anunciar a lei marcial, ou talvez, fechar as fronteiras, retomar a Cortina de Ferro. Porque acha que Putin hesitou em fazer qualquer uma destas coisas?

VV — Penso que é exatamente o que temos vindo a dizer. Ele sente que os seus timings estão todos errados. Eu diria que a lei marcial foi a modos que semi-declarada, se olharmos para o que está a acontecer no país, mas penso que ele está a vacilar com a mobilização. Ele quer ver até onde pode ir e depois vai, talvez, tentar uma segunda e terceira vaga. Fechar as fronteiras parece-me inevitável ou, pelo menos, fechar as fronteiras a determinados segmentos da população. Parece-me que a história da mobilização foi trazida da prateleira tão rapidamente que outras coisas ficaram para trás. Eles estão sem tempo, mas a lógica sugere que eventualmente vão precisar de fechar as fronteiras a, pelo menos, uma parte da população.

JBAqueles homens com idades entre os 18 e os 60 anos são mais do que prováveis.

VV — Homens com idades entre os 18 e 90 anos...

JBSim, entre 18 e 90 anos. Nos seus vídeos explicou que Putin, no seu pensamento, não acredita que esteja em guerra com a Ucrânia e vemos isto refletido na televisão estatal russa. Eles rejeitam a Ucrânia, ela nem sequer existe. Acreditam que já estão em guerra com a NATO e, especificamente, você disse que Putin acredita que já está em guerra com os Estados Unidos. Pode explicar a sua opinião sobre essa afirmação?

VV — Penso que a lógica de Putin é que não se pode estar numa guerra com um país que não existe, mas penso que a história básica ali é que Putin quer recriar a ordem internacional sem ter uma imagem clara do que a mudança poderia realisticamente proporcionar e sem ter sequer uma imagem clara do que poderia parecer essa ordem internacional que desejada. Isso inclui outras aspirações russas, uma vez que se começa a articulá-las. Ele acha-as coerentes, por isso quer derrotar a NATO e fazer com que a NATO se dissolva ou fique desprovida de qualquer eficácia, e quer ganhar um controlo significativo sobre praticamente toda a Europa de Leste. É, portanto, caso para dizer que a Ucrânia para Putin, se tivesse a capacidade que não tem, era apenas uma fronteira num padrão mais amplo de escalada e que não vai parar, a menos que fique sem capacidade.

Putin tem de facto um certo ressentimento em relação à Ucrânia, mas afinal isso é muito secundário em relação à sua categorização da Ucrânia como território, território no qual está a ocorrer uma disputa entre as grandes potências. Há muitas coisas que o preocupam especificamente, no que diz respeito à Ucrânia, e isso é realmente sobre a Ucrânia ser uma democracia. A Ucrânia ser uma democracia numa altura em que o regime de Putin é frágil é, para ele, simplesmente uma ameaça existencial, porque, simbólica e praticamente, a existência da Ucrânia encorajaria as forças democráticas na Rússia.

Isso é inaceitável, mas para além disso ele está a tentar quebrar aquilo a que chama o mundo unipolar, tentando enfrentar o Ocidente e a NATO. É muito importante notar que muito do seu pensamento aqui é um pouco místico e mitológico, eu não poria isto de forma demasiado geopolítica. Dato-o de cerca de 2012, quando ele começou a pensar em termos mais ou menos civilizacionais. Começou a pensar num choque de civilizações, mas não era coerente e articulado como o livro de Huntington, Clash of Civilizations era. Está cheio de vários tipos de citações de pensadores fascistas russos, vários tipos de visões, várias heranças de ideias religiosas com que se deparou.

Existe uma espécie de conjunto místico e bastante obscuro de tentações que o levam a pensar que está de alguma forma a defender o destino único da civilização russa e que isso hoje o obriga a enfrentar o Ocidente e a enfrentar a NATO. Mas se me perguntarem como é que visualizo a ordem mundial ideal de Putin, como seria, à excepção de Putin ter uma esfera de influência maior do que a que tem agora, não há muito a dizer porque não acho que seja uma aspiração geopolítica transparente e é por isso que é tão difícil para nós compreender porque é que ele está tão empenhado nisto.

Há elementos de uma espécie de mística pseudo-religioso neste material e isto é novo. Putin era muito mais do tipo funcionário quando chegou ao cargo, mas as coisas começaram a mudar, penso eu, um ou dois anos antes da Crimeia, e estamos a ver que agora atingem um nível bastante novo.

Um projeto sem ideias

JBSinto o que está a dizer, porque li as transcrições, ouvi os discursos que ele proferiu e ele está a ir contra os ideais ocidentais e a filosofia ocidental, mas ainda estou a lutar para compreender qual é a sua visão alternativa. Quais são os ideais alternativos e a filosofia alternativa que ele está mesmo a oferecer ao seu próprio povo para seguir? Pode resumi-lo para que faça sentido para mim. O que é que me está a escapar?

VV — Não quero ser uma espécie de cínico corrosivo aqui, mas receio ter de o ser. Uma das minhas especialidades é o pensamento russo do século XIX e não consigo reconhecer nada do que Putin está a tramar na herança intelectual e cultural que se encontra nas conversas da Rússia consigo mesma ao longo do tempo, sobre a sua identidade, sobre para onde vai. Há alguns regimes, alguns governos que são muito mais movidos por ideias bastante coerentes, por vezes encantadoras, por vezes pouco amáveis. Tivemos muitos exemplos disto. É frequentemente o caso de haver ideias que impulsionam vários tipos de projetos políticos. No Reino Unido, o thatcherismo foi um exemplo de projeto que se descreveu a si próprio como não sendo ideológico, mas era imensamente ideológico e tinha ideias ideológicas bastante coerentes. Por exemplo, sobre a primazia do mercado livre e até se podia rastrear onde elas foram criadas. Mas penso que, com Putin, o que se tem é um regime que não se baseia genuinamente em ideias, sem ser num sentido oportunista e por isso não é acidental que praticamente o único tipo de intelectual a tentar defender o regime de Putin com grandes ideias seja Alexander Dugin, que fala da Ucrânia como um espaço ontológico significativo. Quando olhamos para estes jovens rapazes de remotas cidades russas que vão para a Ucrânia, cometem atrocidades, roubam frigideiras, isso não é um espaço ontológico Sr. Dugin, é treta.

O que temos na minha avaliação é a Rússia a tentar afastar-se completamente da Europa, afastar-se das ideias europeias, mas isso é impossível, porque as ideias da Rússia sobre si própria são em grande parte europeias. A Rússia a afastar-se das ideias políticas europeias, das ideias éticas europeias, dos recursos culturais europeus é como um cão a tentar fugir da sua cauda. Isso não significa que a Rússia seja como a França ou a Alemanha. É muito diferente. Mas no fim, a literatura russa é um ramo numa árvore chamada literatura europeia. As ideias políticas russas são um ramo da árvore chamada, o que quer que lhe queira chamar, a história intelectual do Ocidente. A Rússia está a tentar ir para um espaço que não existe. Muitas vezes o rótulo que lhe é dado é eurasianismo e vários tipos de ideias eurasiáticas, mas pessoalmente penso que essa é uma classificação geográfica e que, na realidade, não tem praticamente nenhum conteúdo cultural, intelectual ou político significativo.

O que estou a ver é a Rússia a fazer o que aquele pinguim fez no filme de Werner Herzog sobre o Pólo Sul, quando apanhou um pinguim a caminhar para o interior do continente, para a morte certa. A Rússia está a tentar afastar-se da Europa e inevitavelmente terá de voltar para a Europa porque todas as conversas que a Rússia alguma vez teve consigo mesma nos últimos 200 anos foram significativamente baseadas em ideias europeias. Portanto, para mim este é um regime desprovido de ideias, e é um regime desprovido de ideias russas porque as ideias russas são europeias. Não quer lidar com nada que seja europeu.

Há uma espécie de gambito ideológico que este regime gosta de jogar, que é de que é mais europeu do que a Europa, porque encarna os valores do conservadorismo europeu, mas isso para mim é tecnologia política e quando se olha por baixo do capot não há um verdadeiro envolvimento com modelos alternativos de modernização que possam ser mais apropriados para a Rússia do que para os países da Europa Ocidental. Penso que há um verdadeiro défice de ideias. Há uma espécie de papa ilustrada das citações favoritas de Putin, mas não vejo qualquer substância ao nível das ideias sobre o que este regime pretende. Por outras palavras, até poderíamos dizer que tem coerência, que tem ideias coerentes, só que as odiamos. Mas não creio que isso seja verdade. Penso que é um regime desprovido de ideias, o que é uma história extraordinária sobre a decadência cultural e política que a Rússia está a atravessar.

Putin e Hitler

JBNo meu canal desenhei pessoalmente paralelos entre a Alemanha nazi e a Rússia de hoje, paralelos entre Adolf Hitler e Putin. Acha que desenhar este tipo de paralelos é apropriado ou acha que é um exagero, dada a história?

VV — Penso que já falámos tempo suficiente, é definitivamente tempo de falar de Hitler (risos). Penso que não há absolutamente nada de errado em fazer paralelismos como este, desde que não os inflacionemos demasiado.

A chave para esta analogia é precisamente aquilo de que temos falado, que a Rússia ainda é, em boa medida, um regime autoritário que é 75% baseado na despolitização, mantendo os cidadãos passivos. Quando a Rússia dá mais passos totalitários, se o faz e tenta ativar a população, tenta impor à população o Z, este estúpido emblema que criou, uma espécie de suástica incompleta, então essa comparação será mais convincente, especialmente se falarmos de Hitler até ao final de 1939. Mas mesmo ficando nos 39 e mais cedo, existem então paralelos importantes que não podemos negar. Temos este extraordinário complexo, um sentimento de humilhação que um grande poder sente, que é então imensamente intensificado e explorado pela liderança política, que oferece como solução uma intervenção agressiva nos estados soberanos vizinhos. Esta sensação de grande potência humilhada a reagir é um paralelo importante e penso mesmo que existem alguns paralelos biográficos.

O tipo de emoções que Hitler estava a fabricar em si próprio nos anos 20 sobre como esta grande potência precisava de recuperar e dar uma lição a todos é o tipo de coisa que Putin estava a sentir e o que é interessante é que o próprio Putin não parece ter beneficiado das extraordinárias liberdades que Gorbachev deu àquele país. Ele não parece ter gostado. É paranóico em relação a algumas das qualidades anárquicas da Rússia nos anos 90, apesar de ele próprio ter participado nisso de todas as formas.

Está traumatizado (não deveria estar mas está) por algumas intervenções ocidentais em diferentes partes do mundo. A Jugoslávia, e o Kosovo, em particular, enraiveceram-no. Na minha opinião, a única coisa que o enraiveveu mais foi a Líbia, e foi a Líbia que, em boa parte, o convenceu de que tinha de se livrar do Medvedev e voltar. Há este tipo de ligação biográfica entre Hitler nos anos 20 e Putin nos anos 90, fabricando todo este material de uma potência humilhada que precisava de recuperar. Claro que, embora a Rússia seja um país autoritário, existe esta outra ligação que é o facto de se estar a falar de países que basicamente não só proíbem e excluem a oposição, mas veem a oposição como inimigos patrocinados por traidores e agentes estrangeiros. Isso também é uma sobreposição bastante significativa. Putin vê toda a oposição como sendo inimigos patrocinados por agentes e traidores estrangeiros malignos, assim também há isto. Será que Putin vai em frente e criará grandes campos nos quais as pessoas vão ser exterminadas em grande escala? Suspeito que não, mas não creio que haja nada de ilegal em fazer a comparação. Penso que existem paralelos claros, especialmente se pararmos num ponto histórico.

A influência de Putin fora da Rússia

JBReferiu num dos seus vídeos que se Putin conseguir manter-se no poder, mesmo que talvez seja expulso da Ucrânia, pensa que daqui a 10 anos será mais popular na América do Norte e na Europa, nas democracias ocidentais, do que é hoje. Pode alargar essa afirmação?

VV — É uma manipulação da minha parte, que tenta despertar um pouco a minha bela comunidade para alguns dos desafios que enfrentamos em casa, nos nossos países, com as nossas democracias. Penso que os cidadãos estão profundamente insatisfeitos e perderam a confiança na democracia e nas instituições públicas, têm uma propensão para se envolverem nesse tipo de fantasia. Penso que ainda hoje, no meio desta guerra brutal, existem alguns países na Europa onde Putin, nas sondagens de opinião pública, estaria acima de alguns políticos nacionais proeminentes daquele país. De onde venho com isto é que acredito que estamos perante uma crise de confiança na política, nas instituições públicas, na democracia, que é maior do que tudo o que o Ocidente enfrentou, provavelmente desde as revoluções europeias de 1848. Não é a maior crise política que enfrentamos, é a maior crise de confiança, na minha opinião, que enfrentamos. O que temos agora não é apenas cidadãos que sentem que os governos são inúteis ou que os governos estão a trabalhar contra eles e a traí-los: os cidadãos estão a sentir mais duas coisas que são realmente significativas. Uma é que sentem que não podem de forma alguma infletir a direção do seu governo, que não há nada que possam fazer que possa afetar a forma como as coisas estão a correr. É uma verdadeira sensação de fragilidade, uma sensação de virar a roda e de nada acontecer. Isso é muito assustador para os cidadãos, para os eleitores. Penso que há algo ainda pior e que é para muitas pessoas uma espécie de opacidade que desceu sobre as nossas instituições públicas. Olham para as nossas instituições e não é claro o que estão a ver. Digo frequentemente que a experiência para muitos cidadãos é como olhar para quatro ou cinco jogos desportivos misturados num só. Estão a ver tacos de críquete, estão a ver raquetes de ténis, estão a ver raquetes de ténis de mesa, mas não é claro que qualquer jogo esteja a ser jogado com regras que façam sentido. Quando se tem este sentimento de opacidade sobre as instituições, sinto que o primeiro instinto é começar a desistir delas ou começar a enamorar-se de pessoas que tentam alegremente derrubá-las. Não quero dizer muito mais, mas esse sentimento geral de perda de confiança é onde começo um rasto de pensamento que termina com esta conclusão algo provocadora de que Putin poderá ser mais popular no futuro se ele por acaso ainda estiver no poder.

Guerra civil ou revolução na Rússia?

JBNa sua opinião, neste momento, qual é a probabilidade de a Rússia cair em alguma forma de Guerra Civil?

VV — É real porque não se começa a mexer em fronteiras fora do país, especialmente se tiver uma espécie de forma imperial no interior do seu país. Quer dizer, a Rússia tem uma enorme diversidade étnica e uma desigualdade cataclísmica. De facto, parte do que vê na Ucrânia, apenas uma parte do impulso, é que se nota uma espécie de inveja destes rapazes de cidades russas remotas verem que os ucranianos vivem melhor do que eles.

Essa não é a motivação principal, mas penso que faz parte, e sei desde já que quando se veem os mesmos rapazes nas ruas de Moscovo, quando são trazidos pela Guarda Nacional, que faz todo o policiamento que acontece quando há eventos públicos. Estes rapazes adorariam ser deixados à solta em Moscovo. Na verdade, penso que o que fizeram na Ucrânia, muitos deles adorariam fazer em Moscovo. Moscovo é como um país dentro do país. Contém uma riqueza inacreditável em comparação com o que se passa no resto da Rússia. Sr. Putin, começou a mudar de fronteiras, metade da sua população é de grupos étnicos diferentes, tem profundas desigualdades, razões profundas para se ressentir do centro. A ideia de que as suas fronteiras não vão começar a deslocar-se por dentro, Sr. Putin, é implausível. Uma coisa que eu diria é que é improvável que a Rússia permaneça exatamente nas suas fronteiras atuais. Penso que vai haver fronteira a flutuar e marcos a mexer. Precisamos de ver até onde isso vai.

Penso que nada pode ser excluído neste momento. Penso que uma revolução não pode ser excluída, um golpe não pode ser excluído e algum tipo de guerra civil não pode ser excluída. Vimos uma guerra civil na ex-Jugoslávia nos anos 90. Tal acontecer num território com muitas armas nucleares é algo difícil de compreender. Vamos ter de ver como corre, mas os ingredientes para a Rússia começar a desmoronar-se e para que isso não seja pacífico estão lá, na minha opinião.

Conselhos à oposição russa

JBDesde que Putin tomou o poder há mais de 20 anos, não conheço os números, mas adivinho que dezenas de milhares, senão centenas de milhares de russos deixaram o país porque não querem viver no regime de Putin, e a estes russos que vivem no exílio juntaram-se agora mais algumas centenas de milhares de homens evitando a mobilização. Que conselho daria a todos estes russos que vivem fora da Rússia e que gostariam de ver mudanças dentro da Rússia? O que podem eles estar a fazer enquanto vivem na Turquia, Finlândia, Inglaterra ou outros países em todo o mundo?

VV — Eu diria que a primeira coisa é compreender o problema central, este problema de despolitização, por isso não tentem iluminar os russos com informações que os façam desviar ainda mais o olhar. Compreendam qual é o problema. O problema é um tipo extraordinário de despolitização e é preciso começar a ter uma conversa com os russos dentro do país sobre como eles podem tornar-se cidadãos e como podem começar a sair disto. É uma conversa muito dolorosa porque eles vão resistir, porque não querem enfrentar que o seu acordo com o regime se tenha revelado catastrófico. Penso que é a primeira coisa, que se tem de começar por aí.

A segunda coisa é que é preciso ter uma visão do futuro da Rússia que vá além de se ver livre do regime de Putin. É preciso uma conversa rica sobre que tipo de país a Rússia vai ser, que tipo de relação com a Europa vai ter, que tipo de instituições vai ter, quão descentralizada vai ser se continuar a existir como uma entidade única, e isso é importante porque para muitos russos anti-Putin e pró-Ucrânia a guerra é tão dolorosa e as atrocidades que os russos estão a cometer na Ucrânia são tão extraordinárias que é mesmo tentador tornar-se um ativista da Ucrânia e do derrube de Putin (o que é importante, penso que uma parte central da Rússia avançar é na verdade Putin ser derrotado, o que é absolutamente correto) mas isso não é suficiente, porque, especialmente se se aspira a ser um futuro político russo, é preciso fazer mais do que este tipo de ativismo.

É preciso de ter uma visão de para onde a Rússia está a ir. Tem havido uma limitação, para dizê-lo educadamente, desse tipo em alguns dos discursos da oposição, em que se pergunta às pessoas qual é o anseio do futuro e a resposta é: um país normal. Que tipo de economia se quer para a economia russa? Economia normal. Que tipo de relação deve a Rússia ter? Relações normais, não precisamos de mais, Tem de haver esse tipo de história e depois isso liga-se ao protesto, porque, para que o protesto seja viável, as pessoas precisam de ver para onde vão, porque vão para lá, e depois precisam de ver o protesto como um mecanismo para lá chegar.

Neste momento, existem muitas autoridades morais extraordinárias na Rússia. Acima de tudo Alexei Navalny que é um herói extraordinário cujo capital está a crescer, enquanto sobreviver na prisão. Mas para complementar este tipo de exemplo moral, penso que a Rússia precisa de uma conversa mais rica sobre para onde realmente tem de ir, e depois tem de falar sobre um sistema político. Tem de se falar de economia. Tem de se falar de descentralização. Claro que é verdade que algumas coisas, se o regime de Putin entrar em colapso, poderiam ser melhoradas através só de vontade de agir. O exemplo mais claro é o sistema de tribunais. Se simplesmente parasse a pressão política pública sobre os tribunais, estes começariam, em boa medida, a trabalhar por si próprios porque, neste momento, estão completamente peados por exigências políticas. Há algumas coisas que começarão a funcionar simplesmente por se eliminar a tirania, mas isso não vai permitir que se façam experiências bem sucedidas na Rússia. Pelo menos tentar tornar-se algo como uma república democrática moderna e aqui está outra coisa que acredito ser realmente muito importante para mim.

Penso que, para além da brutal invasão russa da Ucrânia, há outra forma de ver o que está a acontecer naquele espaço ex-soviético. É vê-lo como uma espécie de guerra civil entre duas visões, uma visão imperialista autoritária e a visão de uma república democrática moderna. O que a Ucrânia tem feito, notavelmente, é consolidar-se numa direção muito clara. Quer ser uma república democrática moderna. Vai ser um desafio chegar lá, mas há um verdadeiro compromisso. Agora que se pode sentir na Ucrânia que um quarto da população russa está comprometida com isto, muitas pessoas na Bielorrússia estão comprometidas com isto, porque as pessoas na Bielorrússia estão foram mais claramente tomadas como reféns pelo seu regime do que na Rússia. Na Rússia há este tipo de dança entre a população e o regime que correu mal, e agora têm medo de agir, e agora o regime é tirânico e é difícil fazer qualquer coisa, mas o que estou a dizer é que esse conflito está a acontecer em todo esse espaço ex-soviético. É preciso compreender também nestes termos e apoiar este projeto de república democrática moderna e isso significa compreender que há muitos cidadãos russos que sentem que o regime está em guerra com eles. Em certo sentido, é porque se o criticarem, vão para a prisão ou serão mortos. Por onde eu começaria e para onde vou é que temos de fazer mais política, porque apenas tomar uma posição moral firme, por muito admirável que isso seja, e apenas apoiar a Ucrânia a ir em frente e ganhar, não é um conselho suficientemente sólido para os russos que deixaram o país.

JBPor hipótese, que conselho daria a um homem russo trabalhador de classe baixa que optou por não fugir da mobilização e que acabou de receber os seus documentos de mobilização, dizendo-lhe para se apresentar ao serviço amanhã. Que conselho daria a esse homem?

VV — Não estar numa posição em que os papéis lhe sejam entregues, em primeiro lugar. Se estiver nessa posição, não os assinar. Se os assinou, destruir a sua cópia dos mesmos e depois fugir. Penso que a história positiva é que estes centros de inscrição não são o GRU ou o FSB. Têm lá um par de computadores de há 15 anos, são completamente incompetentes, estão só a tentar seguir o caminho da menor resistência, por isso o que deve fazer, se estiver nessa posição, é colocar tantos obstáculos que seja mais difícil para eles chegarem até si. Isso pode significar ser um convidado em casa de alguém e não aparecer nos endereços registados em seu nome. Pode significar, muito dolorosamente, deixar o seu emprego, se for um emprego estatal, ou mantê-lo e trabalhar remotamente se confiar particularmente no seu empregador e se for uma empresa pequena, e assim por diante, mas penso que é realmente importante tomar todo o tipo de medidas evasivas, porque as probabilidades de vencer este sistema que tenta chegar até si não são assim tão más, devido a ser tão extraordinariamente incompetente. E não cumprir. Se eles vierem à sua porta, não a abra. As hipóteses são de não a derrubarem; avançam para a próxima pessoa que precisam de apanhar. Colocar obstáculos para que seja difícil ser contactado é, penso eu, uma coisa realmente importante, mas que é apenas um conselho prático. Creio que, provavelmente, daria mais alguns conselhos: seguir para onde vai a política de mobilização e agir em conformidade. Assim, por exemplo, há agora uma guerra inter-clãs no regime sobre mobilização. Aos militares foi dado poder que nunca tinham tido antes. Os militares têm sido frequentemente pisados na Rússia e são as agências que têm tido todo o poder, o FSB e o GRU. Por isso estão a gostar, mas agora estão em confronto. Quero dizer que os militares desprezam a máquina de propaganda, por exemplo, porque estão constantemente a ser agredidos por ela. Os militares estão agora a entrar em conflito com as autoridades de Moscovo, porque as autoridades de Moscovo estão a passar-se com a aleatoriedade da mobilização e por isso o presidente da câmara de Moscovo está agora a tentar assumir o controlo sobre isto. Se conseguir, isso poderá significar que em Moscovo a mobilização é muito mais transparente do ponto de vista processual. Se for esse o caso, isso tornará mais segura a sua presença, e assim por diante.

Siga os dramas políticos locais sobre o assunto, mas a terceira coisa que eu diria é: enquanto este regime existir, o seu destino é a guerra. Isto é o que este regime fará até ao seu colapso, mesmo que Putin se torne cético quanto a fazer guerra. Este regime é uma espécie de máquina de escalada e vai tentar fazer guerra enquanto existir. Não fantasie sobre uma situação em que a Ucrânia derrotou a Rússia e esse capítulo foi encerrado. Vão mobilizá-lo dentro de dois ou três anos, por isso tenha consciência de que essa é a realidade que enfrenta até que este regime entre em colapso. É importante não ter quaisquer ilusões sobre isto, aconteça o que acontecer na Ucrânia, pelo que esse seria o meu conselho.

Palavras finais

JBConselhos sólidos. Deu-me muito em que pensar a partir desta entrevista. Agradeço muito o seu tempo. Talvez o possamos ter de volta ao podcast em algum momento no futuro. Tem algumas palavras finais, conselhos finais que gostasse de partilhar com a audiência?

VV — A ideia que tenho é que, se o permitirmos, Putin ameaçará não só a segurança dos ucranianos mas a segurança de todos nós, e por isso sempre que falo com jornalistas ou pessoal dos jornais, desde que comecei a desenvolver uma comunidade no YouTube e me perguntam o que é que os cidadãos dos países ocidentais devem saber. Todos vós sabeis isto melhor do que eu, vendo este canal, é inútil dizer isto, mas digo-o na mesma: Quando enfrentamos desafios, desafios económicos, desafios do custo de vida que estão em parte ligados à guerra, o meu conselho é ver a Rússia não só como uma ameaça económica para a Europa e América do Norte, mas também como uma ameaça à segurança. Isso significa que estou a tomar um forte partido. Não podemos dizer aos políticos: vocês são intimidados pela Rússia e a Rússia é uma ameaça à segurança, mas aqui em França e na Alemanha não estamos tão ameaçados. A Rússia constitui uma ameaça económica mas não de segurança para nós. Como que duas Europas: alguma da Europa é ameaçada por Putin a todos os níveis e para o resto da Europa Putin é apenas uma espécie de ameaça económica. Sou contra essa ideia e a favor da ideia de que o Ocidente deve manter-se unido e que a Europa também deve ter uma conversa sobre o que constitui a Europa. Está a ter essa conversa. É uma conversa divisiva e dolorosa. Parte dela não corre muito bem, mas o lado que apoio nesta conversa é que o Ocidente se junte e reconheça que Putin é uma ameaça para todos nós, e não apenas para os países da periferia da Rússia.

 

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