Em louvor da realidade, não do realismo: Uma resposta a Mearsheimer

Veronica Anghel* e Dietlind Stolle**

28 de Junho de 2022

Artigo publicado na EUIdeas, órgão da European University Institute

Putin num comício patriótico, Moscovo

A 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia. Uma teoria que procura explicar as acções de Putin deriva da escola de realismo ofensivo nas Relações Internacionais (RI), que defende que os Estados são maximizadores agressivos do poder, tentando extinguir quaisquer ameaças à sua segurança. Promovendo esta abordagem, o professor John Mearsheimer (Universidade de Chicago) afirmou numa recente palestra na EUI que a Rússia não tinha outra escolha senão invadir a Ucrânia. O país vizinho representava uma ameaça existencial para a Rússia, devido aos seus laços ocidentais. Este post esclarece porque é que esta narrativa é mal orientada e enganosa.

O ponto central de Mearsheimer é que a política externa dos EUA foi orientada para transformar a Ucrânia num baluarte ocidental na fronteira da Rússia — empurrando-a para mais perto da NATO, defendendo a sua integração na UE e financiando a democracia ucraniana. Além disso, a própria NATO continuou a armar substancialmente o país e a treinar as suas forças armadas ao longo dos anos. De acordo com esta narrativa mono-causal, o resultado foi a Rússia sentir-se ativamente ameaçada como um “grande urso sente quando lhe batem entre os olhos”. Esta imagem de uns Estados Unidos determinados a trazer a Ucrânia para a NATO e empenhado numa expansão agressiva da NATO não é apoiada por factos.

O alargamento da NATO

O argumento baseia-se fortemente na Cimeira de Bucareste da NATO de 2008, onde os chefes de Estado declararam que a Ucrânia e a Geórgia se tornariam membros da NATO (art. 23.º). Foi o presidente dos EUA George W. Bush Jr. quem defendeu esta posição, mas sofreu forte oposição pela França e pela Alemanha, precisamente porque se preocupavam com as questões de segurança da Rússia. Nem à Ucrânia nem à Geórgia foi oferecido um Plano de Acção para a Adesão, nem a declaração gerou uma agenda da NATO centrada no alargamento a Leste. Numa entrevista recente, a antiga chanceler alemã Angela Merkel defendeu a sua decisão de se opor a um Plano de Acção para a adesão da Ucrânia após 2008. A invasão russa da Geórgia em 2008 também não galvanizou a NATO a gastar mais com as suas próprias capacidades militares, quanto mais com as de países como a Ucrânia, Geórgia ou Moldávia. A ajuda dos EUA à Geórgia após a invasão concentrou-se na reconstrução e não se destinava a incluir ajuda militar.

Durante a administração Obama, a Casa Branca virou-se para a Ásia e reduziu completamente a sua atenção à Europa Central e Oriental. A ideia do alargamento da NATO para o Leste estava longe de ser uma prioridade. Uma linguagem semelhante à utilizada em 2008 não pode ser encontrada nas declarações subsequentes das cimeiras da NATO. Só quando a Rússia anexou a Crimeia, em 2014, é que os Estados membros da NATO (lenta e indecisamente) se aperceberam da necessidade de investir na segurança do Flanco Oriental. Essa agenda não incluía, contudo, o alargamento da NATO mais a Leste. Também lhe faltou um seguimento financeiro. Apesar de todos os Estados membros se terem comprometido a gastar 2% do seu orçamento nacional na defesa, em 2016 apenas cinco Estados membros tinham atingido essa meta. Em 2021, o número era ainda de apenas dez.

A reacção do presidente Obama à anexação da Crimeia foi suave (o discurso "não à Guerra Fria sobre a Crimeia", por exemplo) e os líderes do Partido Republicano foram ambivalentes. Enquanto a NATO decidiu aumentar a sua presença na Europa através de formação conjunta, maior interoperabilidade das tropas e rotação de tropas (Declaração da Cimeira de Varsóvia de 2016), a cooperação com a Ucrânia implicou sobretudo assistência médica, comunicação, defesa cibernética e cooperação militar limitada. As declarações da Cimeira da NATO que se seguiram à anexação da Crimeia revelam o interesse da NATO em manter o diálogo com a Rússia, e em moderar a sua postura agressiva para com os seus vizinhos através da diplomacia.

A anexação da Crimeia não convenceu todos os Estados ocidentais da NATO a aumentar as suas despesas com a defesa, mas os seus membros orientais ficaram abalados até ao âmago. O Flanco Oriental da NATO assinou uma declaração conjunta em 2015 com o objetivo de redirecionar mais a atenção da aliança para a região. Mesmo para o Flanco Oriental, o alargamento da NATO estava fora de questão, como mostra o texto. A análise de peritos publicada desde então confirmou pouco reforço do Flanco Oriental entre 2017 e hoje.

O interesse da administração Trump em criar uma Ucrânia baluarte e uma NATO hostil à Rússia é ainda mais difícil de identificar. O presidente Trump admira o presidente Putin. Essa ligação continua até hoje, mesmo após a invasão da Ucrânia. A sua falta de empenhamento no Artigo 5.º da NATO também criou muita angústia entre os Estados membros. Durante o processo de impeachment de Trump sobre a Ucrânia, vimos que o interesse do presidente na região era mais pessoal do que geopolítico.

Em suma, enquanto grande parte da Europa Oriental batia à porta da NATO, eram frequentemente convidados a bater com mais suavidade para não perturbar os vizinhos.

O imperialismo de Putin

O argumento de Mearsheimer também se baseia na leitura errada da Rússia como desprovida de objetivos imperialistas. Na verdade, para ele, a Rússia não está a agir, mas simplesmente a reagir. No entanto Putin virou-se para o imperialismo como um alicerce do autoritarismo russo, para o qual existem inúmeros relatos de especialistas que trabalham na região (Shevtsova, 2014; Politkovskaya, 2003; Robertson e Greene, 2019; Snyder, 2022). O próprio Putin referiu-se repetidamente à ideia de um Mundo Russo Antigo dividido (Russkiy mir) e destacou as aspirações da Rússia a restaurar a unidade. Em Junho de 2021, afirmou que os ucranianos e os russos são um só povo e que a Rússia e a Ucrânia são um só país. Ele continua a comparar-se a Pedro, o Grande, justificando uma demanda para retomar as terras russas. Isto mostra que a presença da NATO na Europa de Leste não é senão um pretexto para uma agenda russa colonizadora.

Não só os especialistas da área argumentam isto, mas 64% das pessoas amostradas de 17 países europeus na recente sondagem EUI-YouGov (2022) concordam que a guerra é exclusiva ou principalmente da responsabilidade da Rússia (ver Figura 1).

Figura 1. Opinião dos europeus sobre quem é responsável pela situação na Ucrânia. EUI-YouGov, 1-25 de Abril de 2022.

Apoiar a visão de Mearsheimer também requer ignorar as aspirações dos países da Europa de Leste. Como devem ser ponderadas as suas preocupações de segurança e particularmente as da Ucrânia contra as da Rússia? Ver a Rússia como uma questão de defesa e uma ameaça à segurança é agora a opinião da maioria em quase todos os 17 países europeus incluídos na sondagem EUI-YouGov. De facto, as opiniões mudaram fortemente só no último ano, de olhar para a Rússia com boa vontade baseada no comércio e na diplomacia, para uma posição muito mais desconfiada. Além disso, os europeus acreditam agora, mais do que nunca, que a NATO é importante para a sua segurança nacional (ver Figura 2).

Figura 2. Opiniões dos europeus sobre a importância dos investimentos da NATO e da defesa para a sua segurança nacional. EUI-YouGov, 2018-2022.

Talvez de forma ainda mais surpreendente, Mearsheimer ignorou na sua apresentação na EUI, não só a vontade russa, mas também a ucraniana. Começando com a Revolução Laranja de 2003-2004, continuando através da Revolução Maidan (2013) e até à Revolução da Dignidade (2014), que levou ao derrube do governo de influência russa, o povo ucraniano expressou o seu desejo de um futuro democrático, europeu, divorciado do seu passado autoritário. Os ucranianos lutaram sozinhos em Maidan, sem a ajuda da UE ou da NATO. Como a guerra de 2022 continua, todos nós somos testemunhas das mesmas lutas pela liberdade e dignidade.

Em muitos aspetos, os ucranianos e os Estados membros da NATO da Europa de Leste têm razões para desejar que Mearsheimer estivesse certo na sua visão da história. O excesso de compromisso dos EUA e da NATO com estes países e uma agenda russa pacífica e não colonizadora soam bem aos ouvidos da Europa de Leste. Infelizmente, esta é uma visão defeituosa — para a qual estes autores esperam ter contribuído com uma correção.


* Veronica Anghel é professora assistente em part-time e fellow Max Weber na EUI e professora na Universidade Johns Hopkins/SAIS. A sua investigação atual centra-se na construção dos estados pós-comunistas e na integração europeia, particularmente o efeito das instituições e elites na democratização. A sua mais recente publicação está aqui.

** Dietlind Stolle é professora James McGill de Ciência Política na Universidade McGill e actualmente fellow Fernand Braudel na EUI. Os seus interesses de investigação incluem o apoio a transgressões democráticas, polarização afetiva, consequências políticas da gravidez, participação política, efeitos políticos e sociais da COVID, adaptação dos refugiados sírios e o papel político da identidade de género.

 

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