Morte, essa ideia absurda
Não adianta andar a fugir com o rabo à seringa. Este assunto, se bem que desagradável, tem que ser encarado. Por uma razão muito simples, é que eu, tal como vocês, sou mortal. Vai-me acontecer um dia destes, é garantido. Se eu tiver alguma influência no caso, prefiro que seja tarde, mas mesmo assim é garantido.
É que nós, humanos, temos uma grande dificuldade em encarar a morte. Na verdade, se for humanamente possível, nem sequer pensamos nisso. Mas de vez em quando a vida obriga-nos a encarar o assunto. Então ligamos a máquina da treta e produzimos as mais extravagantes ideias, sonhos, fantasias, sempre com o mesmo objectivo: não encarar a morte de frente.
Não tenho a mais pequena dúvida que é o problema da morte que propulsiona quase toda a teologia e prática religiosa: acredita nesta fantasia sem pés nem cabeça, ela oferece-te a possibilidade de enganar a morte.
Mesmo os mais decididos ateus podem vacilar ao encarar a morte.
Numa noite do Verão passado, estive num encontro de ateus e humanistas convocado na Internet (um Meetup), na praça em frente ao Museu da Marinha, em Lisboa. Uns quantos ateus à volta de um telescópio e do astrónomo debatiam-se com as condições adversas (projectores inundavam o sítio de luz), mas mesmo assim conseguiu-se ver as luas de Júpiter. Lá se falou de Galileu, Kepler e tal e tal.
Ali encontrei um homem de 80 anos, professor jubilado de uma universidade alemã a viver em Cascais. Estivemos a conversar enquanto o astrónomo montava o aparelho. Não sei porquê, o tema da conversa foi a morte. Ou antes, as exéquias funerárias. O professor começou a descrever a forma como queria que o seu próprio funeral se realizasse. Queria, naturalmente, uma cerimónia laica, em que os amigos se reunissem a homenageá-lo. Mas falava como se ele próprio estivesse a presenciar a cena, com óbvio prazer na dignidade do evento.
Tive que interrompê-lo, de forma talvez um pouco cruel: “Olha, sabes o que disse um escritor anticlerical português? Que a parte boa do seu funeral era que ele próprio não estaria presente!”
O problema da morte é um desafio lógico terrível. Toda a nossa imaginação é orientada para a sobrevivência. A estrutura lógica das nossas frases nega intrinsecamente a morte.
Frases tão simples como “quando eu morrer” já contêm a raiz do equívoco. Supõe-se que eu presencio o evento. Estou vivo antes do evento, vivo o seu desenrolar e estou lá para ver o resultado. Ora bem, não estou. A morte é a transição do eu para a sua não existência, portanto, em rigor, não poderá ser vivida. Pode ser imaginada, mas não pode ser vivida.
É pá, Não penses mais nisso!
Declaração de princípios: eu sou ateu e materialista, e portanto não acredito na sobrevivência de qualquer forma do eu depois da morte. A mente vive suportada no corpo e desaparece com o fim deste. Mas, mesmo para quem não crê em nada de sobrenatural, pensar na morte é complicado.
Mesmo para os ateus, a morte não é fácil. Um crente dirá que para um ateu a morte é insuportável, pois, não sofrendo de ilusões metafísicas, tem de encará-la como o fim, sem apelo nem agravo. Mas o ateu sabe que ela é tão definitiva e irremediável para si como para o crente — o crente é que não o admite.
O que domina todo o nosso pensamento é o instinto da sobrevivência. Não só procuramos sobreviver a todo o custo (ainda bem, porque a vontade de viver é uma vantagem essencial para a sobrevivência da espécie), como censuramos a própria ideia da morte. Temos medo dela.
Mas não é bem assim. Se formo a examinar a morte com atenção, concluímos facilmente que a maior parte dos fenómenos que envolvem morte são compreendidos sem dificuldade por quase todos. Está nesse caso a morte de animais e de humanos distantes.
A morte simples
Não nos faz confusão nenhuma a morte dos animais. Não me refiro a estarmos de acordo ou não com a morte de certos animais, refiro-me à forma materialista como o caso é tratado. O animal morreu, o seu corpo não passa de um monte de carne que rapidamente se decompõe, se não o congelamos, no caso de se tratar de um animal comestível. Ou teremos de dispor do cadáver, caso não seja considerado bom para comer. Nada de metafísica ou de teologia. Viveu, morreu, pronto. Animais considerados inferiores são mortos com muito menos cerimónia, como as moscas ou as pulgas.
No caso dos animais com quem temos laços afectivos, como os domésticos, o caso já é um pouco diferente. Algumas pessoas dedicam ritos funerários aos seus animais de estimação, mais ou menos copiados dos humanos. Muitas vezes esses ritos incluem túmulos, oferendas funerárias e visitas saudosas. Mas não há geralmente iniciativas religiosas. O culto exprime os sentimentos dos donos, quando o animal era vivo, e a saudade que têm dele. Nada mais.
Sempre fui muito mais prosaico a desfazer-me dos cadáveres dos meus animais, apesar de os considerar membros da minha família. Mas não critico quem oferece exéquias as seus animais defuntos. Cada um é como cada qual.
De igual modo, pratica-se calmamente a eutanásia, quando se considera pouca a esperança de recuperação e grande a expectativa de sofrimento por parte do bicho. A intervenção é analisada com carinho pelo animal e consideração pelo seu sofrimento, mas com zero metafísica.
Aplicamos à morte dos animais o bom senso materialista sem problemas nenhuns. Porquê? Porque está convencionado que não têm alma. Ou têm e é mortal. Os budistas são um caso à parte, de que falarei a seguir.
A morte complicada
E quanto às pessoas? Aos estrangeiros distantes não ligamos grande coisa, a não ser que se ponham a morrer em quantidades industriais, o que nos desencadeia algum pânico. Os nossos, os vizinhos, os familiares, os amantes, os pais e os filhos são aqueles cujas mortes realmente nos tocam. É que as mortes dos que estão ligados a nós se ligam à nossa própria morte.
É aqui que a máquina da fantasia parte à desfilada.
Fulano/a não morreu. Eu sinto-o. Pelo facto de ter morrido, não morreu a imagem dele que tenho dentro de mim.
Isto é razoável, mas a seguir a fantasia progride: quando eu morrer estaremos unidos para sempre. Não se percebe como. O suporte da imagem da pessoa desaparecida era o meu espírito, se eu desapareço não haverá mais corpos que sustentem espíritos que se lembrem de quaisquer imagens. Estaremos unidos, mas no oblívio.
A teoria da mente, de que nos dotamos desde a tenra infância, permite-nos compreender os outros e relacionarmo-nos com eles. Mas é a sofisticação da teoria da mente, com a criação de imagens incorpóreas dos outros e de nós próprios que permite ter conversas imaginadas com pessoas ausentes e ficcionar que estamos onde nunca estivemos, é essa mesma teoria da mente que facilita a concepção do espírito como uma identidade diversa do corpo.
É sobre essa base que se cria todo esse edifício fantástico de mitos, onde Orfeu vai ao inferno buscar Eurídice, onde Dante vai buscar Beatriz e todas as outras ficções menos poéticas do juízo final, de São Pedro à porta do céu, de vidas passadas, de zombies e mortos-vivos, de fantasmas e assombrações, eu sei lá.
Para os budistas, alguns animais são intocáveis precisamente porque fazem parte da narrativa do caminho fantástico das almas mortas.
A um nível prático, sabemos todos, mesmo os crentes, que estas histórias são fantasia. A prova? Ninguém deixa de chorar quem morreu por pensar que vai para um lugar melhor. Ninguém deixa de ter medo da morte, por mais que acredite que vai para o céu. A um nível prático, enfrentamos a morte com perfeito bom senso.
É na dor da morte dos outros, no medo da nossa morte que perdemos o bom senso.
A lógica da morte
Para além da fantasia, o problema da morte apresenta dificuldades lógicas.
A nossa consciência está ligada à vida. A nossa consciência desenvolveu-se como um registo da nossa vida, ou, como diz António Damásio, um filme no cérebro. O eu é a consciência de viver, a noção de que estou dentro desse filme, como espectador e actor. Pode-se dizer que eu sou a minha vida.
Eu não existo em abstracto, eu vivo.
Mas a coisa complica-se. Se souber que o Big Bang aconteceu há 14 mil milhões de anos, eu imagino-me no espaço a presenciar a cena. É impossível de duzentas maneiras, mas eu imagino. Sou capaz também, é claro, de imaginar a minha morte. Fora do meu corpo, vendo tudo com grande distanciamento.
Não creio que seja muito vulgar imaginar o próprio momento da morte. Esse momento é difícil de presenciar com distanciamento. Mas o funeral é muito interessante, porque permite uma validação da nossa ideia da importância que temos na comunidade. Quem resiste a uma boa homenagem, mesmo que póstuma?
Mas, para compreender a morte, é necessário abandonar essas fantasias. O nosso funeral só pode ser imaginado, porque não há forma de vivê-lo.
A frase “quando eu morrer”, na realidade tem que ser lida assim:
“Quando eu argh! [som do pernil a esticar] … … … [silêncio para sempre]”
O medo da morte é uma situação instintiva. Não é o medo de sofrer. É o medo mesmo da morte, um comportamento instintivo profundamente enraizado nas vidas de todos os animais, desde as minhocas aos humanos. Há situações de morte altruísta mas, defendo eu, essas acontecem pela contraposição de outros comportamentos instintivos. Os louva-a-deus machos deixam-se comer pela fêmea enquanto copulam, os humanos morrem pela pátria. Mas no panorama geral, são comportamentos muito minoritários, creio.
Sobre esse medo, constroem-se as mais estranhas racionalizações. Mas, se formos a ver, de um ponto de vista racional, o medo de não viver é absurdo. Um indivíduo não pode estar consciente de não viver. Se não vive, o indivíduo não existe. Não pode sofrer nem gozar. Não pode pensar seja o que for sobre o assunto. Não pode pensar, ponto.
This is the end, my friend
Um computador desligado não processa nada. Pior ainda, se lhe tiver passado um camião de 16 rodas por cima. Não só não processa nada, como nunca mais processará coisa nenhuma.
Do mesmo modo, o nosso sistema nervoso desprovido de oxigénio, de sangue, proteínas, aminoácidos, hormonas, neurotransmissores, endorpinas, com todos os milhões de processadores a apodrecer rapidamente junto com todos os bancos de memória e as ligações locais e regionais, e ainda com o processo electroquímico que gera os impulsos nervosos parado, não pode pensar, não pode sentir. Morreu.
Todos os planos para os empreendimentos que estava a planear, todos os amores e ódios, todas as preocupações com o futuro dos entes queridos, tudo o que podia querer para o futuro, junto com todas as memórias do seu passado, tudo isso desaparece. Na verdade, para quem morre o mundo desaparece. Deixa de haver quem veja o filme, deixa de haver filme.
Um dia, talvez se possa atingir uma vida quase eterna. Se se puder fazer um upload da informação contida no cérebro e guardá-la num suporte qualquer, no caso de morte do corpo poderá criar-se um clone e fazer o download da informação armazenada, reconstruindo o indivíduo. Só perderia a vida vivida desde o último backup. Foi escrita muita ficção científica sobre isto, mas não é para já. Tu e eu temos mesmo que enfrentar a morte.
(Desconfio que a coisa é mais complicada. O wiring de cada cérebro provavelmente é dependente do seu desenvolvimento e da sua vida, diferente do seu genotipo a que corresponderia o clone. E para quê fazer voltar a informação ao corpo? Não se podia arranjar uns processadores suficientemente complexos para suportar essa informação a viver literalmente fora do corpo, finalmente a alma a libertar-se da matéria?)
Estas ideias são um pouco estranhas de pensar, não são? Eu diria que são mesmo um pouco repugnantes.
Pois.
Mas já devem saber, mesmo que não admitam, a morte é mesmo assim.
O que há a fazer é viver bem a vida.
Enquanto vivemos, vivamos!
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