O massacre como ostentação

A

ndo a estudar o uso do terror como parte indispensável da guerra e conto, brevemente, escrever sobre isso. Entretanto, surgiu-me um caso curioso do uso do massacre como forma de ostentação.

Recriação do aspeto de Júlio César, a partir de um busto existente no Museu do Vaticano
[Trabalho pessoal]

Júlio César, busto existente no Museu do Vaticano
[Wikimedia]

Por volta de 75 AEC o jovem aristocrata romano de 25 anos Caio Júlio César navegava junto à costa da península da Ásia Menor (que hoje é a maior parte da Turquia), em viagem para ir estudar oratória em Rodes. Caio Júlio, ou simplesmente César, como mais tarde a história o conheceu, era um patrício do mais alto nível. Se lho perguntassem ele diria que era descendente do herói Eneias e da deusa Afrodite, mas mais terra-a-terra, os Césares estavam em Roma desde o século VII AEC e antes disso tinham vindo de Alba Longa, deportados pelos antigos reis de Roma. César tinha as maiores ambições políticas e cultivava-as ativamente. Aprender retórica era um dos quesitos.

Porém, tinha-se deparado com alguns obstáculos. Era sobrinho por afinidade do antigo ditador Caio Mário, que o tinha nomeado para o alto cargo de flamen dialis, sacerdote de Júpiter, mas odiava o cargo, porque o proibia de pegar em armas, cavalgar e ausentar-se de Roma. Colleen McCullough, no seu grande romance hostórico dessa época "O Primeiro Homem de Roma", narra que Mário o nomeou porque teria nele antecipado um candidato a suplantá-lo na fama, e a nomeação serviria para lhe cortar as asas.

Mas ao ditador Mário, líder dos Popularis, seguiu-se o ditador Sula, líder dos Optimates. A cada ditadura seguia-se uma poda dos que tinham opinião contrária e César temeu pela sua vida. Mas Lúcio Cornélio Sula era também seu parente e limitou-se roubar-lhe a fortuna e a demiti-lo do cargo. César afastou-se se Roma, para não tentar a sorte, e dedicou-se à carreira militar, onde conseguira um êxito estrondoso: fora galardoado, no próprio campo de batalha, pelos soldados que comandava, enquanto jovem tribuno, com a corona civica, diante da cidade de Mitilene. Também tinha sido mandado pelo seu cônsul em missão diplomática a pedir barcos junto do rei Nicomedes da Bitínia (um reino que ficava como quem vira à direita à entrada do Mar Negro, onde ainda não estava Constantinopla). Trouxe de lá os barcos e a fama de ter tido um romance com o rei, um famoso homossexual.

Bom, então Caio Júlio estava a caminho de Rodes para aprender retórica, depois de se ter coberto de glória militar, mas o seu navio é assaltado por piratas. César não estava em perigo, pois o objetivo deles era obter um resgate valioso por terem apanhado um VIP. Estabelecem o preço de vinte talentos, mas o figurão insurge-se. Demasiado barato. Uma figura como ele, decerto valeria cinquenta talentos, diz Plutarco nas suas Vidas Paralelas. É talvez o único caso registado na história em que uma vítima de sequestro negoceia para encarecer o seu resgate. Os piratas levam os sequestrados para o seu refúgio na parte da costa sul da Anatólia chamada então Cilícia Trachea. César não cessa de irritar os piratas, dando ordens como se fosse o chefe e dizendo a este que há-de crucificá-los a todos. O chefe ri-se, porque, mesmo que o jovem romano conseguisse apanhá-los, toda a sua gente valeria demasiado como escravos para que os matasse.

Quando o resgate foi entregue e os prisioneiros libertados, César, embora sendo um civil sem cargos públicos, angaria uma frota em Mileto e de imediato a leva ao refúgio dos piratas. É que ele tinha decorado os relevos da costa e tinha-lhes ficado, digamos com o endereço. Presos os piratas, dirige-se ao governador local para que os condene. Mas o governador, tal como o capitão pirata tinha adivinhado, começa a pensar no seu valor como escravos. César antecipa-se e crucifica-os todos.

César nunca hesitou em esbanjar dinheiro ou até endividar-se para criar um grande espetáculo público. Se se tratava de aumentar a sua fama, então valia a pena sacrificar os escravos e o dinheiro que podiam render.

T

emos agora um segundo caso, mil e quinhentos anos mais tarde e mais etnicamente próximo de nós. Na publicação da conferência "The Hajj and Europe in the Pre-Colonial and Colonial Age", da Universidade de Leiden, Mahmood Kooria tem uma comunicação chamada “'Killed the Pilgrims and Persecuted Them': Portuguese Estado da India’s Encounters with the Hajj in the Sixteenth Century" ("'Mataram os Peregrinos e Perseguiram-nos': Os encontros do Estado da Índia português com a peregrinação a Meca no século XVI") (PDF, p. 24), onde conta o encontro de Vasco da Gama com um navio de peregrinos de Meca.

"O primeiro ataque português conhecido e noticiado contra os peregrinos do Oceano Índico ocorreu nas águas do Malabar [...]. Perto de Calicute, já em 1502, Vasco da Gama apreendeu um grande navio mameluco de propriedade real chamado Meri, que tinha deixado Calicute com muitas mercadorias; e 'por ser tão grande e seguro, muitos muçulmanos honrados viajaram nele em peregrinação à sua abominação de Meca, e ele voltou com esses peregrinos e também com uma carga muito rica'. Nas suas Décadas da Ásia, João de Barros afirmava que Gama e seus associados capturaram o navio e queimaram-no junto com os peregrinos e mercadores, embora este oferecessem uma grande recompensa aos portugueses. Um capitão do navio foi resgatado devido à sua perícia e cerca de vinte crianças foram capturadas a fim de convertê-las ao cristianismo."

O conferencista cita também o escrito de um viajante holandês anónimo que seguia no navio de Gama, o qual notou que a vontade de matar muçulmanos não impediu o saque: "Apanhámos um navio de Meca, do qual estavam 380 homens e muitas mulheres e crianças, e dele tirámos pelo menos doze mil ducados e mercadorias no valor de dez mil mais; e queimámos o navio e todas as pessoas a bordo com pólvora, no primeiro dia de outubro."

No universo moral estranho de Vasco da Gama, seria uma desonra receber dinheiro para salvar a vida dos peregrinos e marinheiros; pelo contrário, assassiná-los era a decisão moralmente certa.

Este episódio vai ilustrar também o assunto que ando a estudar, o uso do terror como instrumento de guerra. O império português na Índia iria sustentar-se, não no comércio direto de especiarias, como a história oficial portuguesa ainda indica, já que a quantidade de especiarias transportada nas naus portuguesas é irrisória. O ganha-pão dos portugueses era tomar partido da sua esmagadora superioridade em tecnologia naval e artilharia para cobrar o cartaz, ou seja, dinheiro exigido a quem navegava no Índico. Nada melhor do que mandar ao fundo um barco cheio de peregrinos para convencer os locais de que os portugueses não brincavam.

(Não sei se, em 1502, Vasco da Gama já estava ciente deste modelo de negócio, ou se ainda vivia na ilusão de que poderia sustentar o império no transporte de especiarias.)

O

 terceiro caso vem de muito longe, do passado mítico. Na Bíblia, Josué, à frente do povo hebraico, ataca a cidade de Jericó. Depois de uma magia com trombetas e gritos imaginada por Jeová, as muralhas da cidade caem e os judeus conseguem, milagrosamente, conquistá-la. Mas Jeová proíbe-os de lucrarem com a conquista:

"E tudo quanto havia na cidade destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até à mulher, desde o menino até ao velho, e até ao boi e gado miúdo, e ao jumento." — Josué 6:21

"Porém a cidade e tudo quanto havia nela queimaram a fogo; tão-somente a prata, e o ouro, e os vasos de metal e de ferro, deram para o tesouro da casa do Senhor." — Josué 6:24

Jericó, ruínas atuais, Cisjordânia, Palestina.
[Fonte: Jornal Haaretz]

Escusado será dizer que nada disto sucedeu. O Êxodo, os quarenta anos no deserto, a passagem do Jordão e a tomada de Jericó são mitos. Os patriarcas como Abraão, Moisés, Josué, tudo mitos. A arqueologia e a consulta de documentos históricos de outros povos invalidaram todas essas narrativas.

Mas porquê matar toda a gente, homens, mulheres, crianças, até os animais? O leitor moderno sente-se naturalmente horrorizado com toda esta crueldade, ainda por cima por ter sido ordenada por Jeová. Mas, tentando ver a questão com o ponto de vista de quem foi escrevendo a narrativa, as questões são outras.

Há milénios que as leis da guerra, no que toca ao cerco a cidades, não têm mudado muito: perante um exército sitiante, a cidade pode escolher submeter-se e pagar um pesado tributo; talvez até o tirano local possa manter o poder, enquanto vassalo do poder inimigo. Se a cidade escolher resistir, os atacantes vão saqueá-la, cometer talvez uns massacres e, dependendo das eras, escravizar os habitantes. As guerras eram, quase sempre, empresas lucrativas, financiadas pelo saque e pela captura de escravos.

Porquê, no caso de Jericó, desperdiçar toda esta riqueza? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o plano de Jeová e Josué para a terra que havia de ser de Israel era puramente genocida, do tipo do projeto de Hitler para a Polónia, Ucrânia e Rússia, o lebensraum: exterminar aquele povo todo e povoar de novo a terra com o meu povo. (Mais uma vez: tal não aconteceu. Os israelitas eram iguais geneticamente ao povo que lá vivia; não vieram de fora, a conquista não aconteceu, mas diferenciaram-se lá dentro.)

Mas, além disso, aquela campanha militar tinha um caráter sagrado. Era conduzida pela própria divindade. A proeza de fazer cair as muralhas fora conseguida, não pelos soldados, mas pelos sacerdotes, em procissão com a Arca da Aliança e tocando as suas tubas de forma ritual. Lucrar com essa conquista seria tabu. Tudo teria que ser destruído, habitantes, animais, a própria cidade. Sinal de pureza e, uma vez mais, de mostrar superioridade perante a cobiça, ou seja, de ostentação.

 

Comentários

  1. Gostei de ler. Ocorreu-me que nisto de massacres não te faltará matéria, infelizmente. Hunos, mongóis, japoneses na China...

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  2. O que me interessa não são os massacres, mas o uso do terror como instrumento político e militar.

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