Didier, o iluminado

Tenho encontrado menções no Facebook e noutros lados ao dr. Didier Raoult, como voz alternativa, até talvez como cientista alternativo com respeito ao combate ao Covid-19. Portanto, resolvi investigar.

Trata-se de um cientista e médico conhecido, com um trabalho importante no passado nos domínios da infecciologia e da virologia. Nada sei sobre esses assuntos e a minha opinião nesses campos não tem qualquer valor. Mas conheço alguma coisa de comunicação, e é sob esse prisma que vou analisar o que encontrei.

Vi o homem em vídeos do YouTube. O pior dos veículos para afirmar verdades científicas, disso não há dúvida. Longos cabelos brancos, sentado no seu consultório de bata branca. “O tipo é vaidoso”, pensei eu. Porque estará de bata branca? Não está a dar consulta… Ah, sim. É um emblema. Afirma que é médico e que a sua opinião tem o valor automático que damos à do médico que vai tratar-nos dos nossos achaques. É encenação.

Oiço o que diz. Tem uma teoria alternativa sobre as estirpes de vírus, relacionada com as criações de visons. Noutro vídeo, afirma que as medidas de confinamento são desnecessárias e prejudiciais e que a doença deveria ser combatida clinicamente, caso a caso. O seu discurso é seguro, descrevendo o que investigou como se fosse um Sherlock Holmes, falando dos indícios e das conclusões evidentes. O que está a dizer contradiz milhares de cientistas e a OMS, mas isso não parece preocupá-lo. Não se dá ao trabalho de valorizar ou refutar o trabalho da maioria dos seus colegas. É o grande investigador que examinou sozinho os indícios que mais ninguém viu e que só a sua incomparável inteligência pode revelar.

Estou dececionado. A ciência não funciona desta forma. Poderia, ainda assim, ser um génio incompreendido. O mundo da ciência não é perfeito, está cheio de compromissos políticos e consensos conservadores, eventualmente derrubados por investigadores iconoclastas – mas que parece um charlatão, lá isso parece.

Antecedentes

A sua carreira científica afigura-se sólida e de mérito indiscutível. O seu nome aparece ligado a um certo número de avanços e descobertas no campo da infecciologia, nomeadamente as riquétsias, os vírus gigantes, a SARS, a peste, até o microbioma intestinal – se bem que um tanto propenso à busca da glória pessoal.

Dirige, de 2008 a 2017, a Unidade de Pesquisa sobre Doenças Infecciosas e Tropicais Emergentes, em Marselha e Dakar (URMITE). Em 2018 criou o Instituto Hospitalo-Universitário Mediterrâneo Infeção (IHU Marseille Infection).

Mas a sua vaidade já o tinha levado, há alguns anos, para o lado obscuro da Força, tudo leva a crer.

Em 2006, Rault e alguns co-autores veem suspenso o direito de publicar por um ano nas revistas da Sociedade Americana de Microbiologia (ASM), devido a um artigo científico em que dados iguais eram apresentados como experiências diferentes, uma desonestidade científica evidente. Raoult ripostou alegando que não tinha lido a versão final, demitindo-se desse organismo científico e proibindo o seu laboratório de publicar nele1.

Em 2013, toma lugar nas fileiras dos negacionistas do aquecimento global, afirmando que as previsões de aumento das temperaturas eram falsas e que o modelo matemático estava errado, nomeadamente que o nosso planeta tinha deixado de aquecer2. Nessa época os negacionistas climáticos promoviam a ideia da paragem do aquecimento e o conceito de “burla climática”. Tal é ainda mais insustentável hoje, tendo em vista que é impossível ignorar o aumento da temperatura mundial. Isto, para mim, é um indicador gravíssimo sobre a eventual deterioração do pensamento do personagem.

Em 2017, denúncias de engenheiros e técnicos acusam Didier Raoult de assédio sexual e profissional e de impor condições de trabalho desumanas na UMITE. As instituições de tutela do instituto, após inquérito, confirmam que as acusações são procedentes3.

Três chineses que morrem

Raoult tomou posição desde o início da pandemia, em janeiro de 2020, em vídeos do canal Youtube do seu laboratório, no sentido de minimizar a sua gravidade: “Há três chineses que morrem e dá-se um alerta mundial. A OMS mete-se no assunto, fala-se na TV e na rádio. Tudo isto é uma loucura. Deixou de haver qualquer lucidez” 4.

Em fevereiro, insiste em declarações ao Journal du Dimanche: “Este vírus não é assim tão mau. Na hora da hiper-reatividade das redes sociais, os responsáveis políticos têm medo de não fazer o suficiente, então fazem muitas vezes de mais” 5.

Depois de uma quantidade de tomadas de posição que minimizam a pandemia, o semanário Marianne atribui a Raoult, já em outubro, o primeiro lugar em sete entre os médicos franceses que teriam feito melhor em calar-se sobre a Covid-19: “Vagamente mediático, o professor Raoult também é de um otimismo infalível, embora muitas vezes se esqueça de especificar que o seu instituto de Marselha não trata nenhum paciente em cuidados intensivos. Na segunda vaga, nunca acreditou. A partir de 12 de maio, explicou: ‘Este episódio está a resolver-se, não há em sítio nenhum uma segunda vaga’. Em meados de outubro, enquanto esse cenário de uma segunda vaga maciça, imaginada já em maio por muitos cientistas, parece materializar-se, Didier Raoult reconsidera a sua posição. ‘Não consigo exprimir-me sobre uma segunda onda, não sei o que é’, admite alegremente. E esta semana novamente, [...] defende-se explicando que já não é ‘a mesma epidemia’. O importante é ser coerente.” 6

A hidroxicloroquina

Rault é um dos primeiros promotores ocidentais da hidroxicloroquina como tratamento para a Covid-19, a partir de alguns resultados inconclusivos na China7. Em março, anuncia um estudo do seu laboratório, com resultados positivos, sobre a eficácia do medicamento8. A sua metodologia é posta em causa por outros cientistas, nomeadamente a ausência de um grupo de controlo9. Alguns críticos chegaram inclusivamente a acusar o estudo de falsificação de dados10. Dois novos estudos publicados a seguir, em 80 e 1061 doentes com sintomas ligeiros, são também largamente criticados.

No fim de abril, diversas publicações científicas alertam para que a hidroxicloroquina mais azitromicina como tratamento é provável que piore o estado de saúde dos doentes, em vez de o melhorar. Raoult indigna-se com a “alucinação coletiva da comunicação social” contra a hidroxicloroquina e fala de boicote dos principais responsáveis médicos de França. Graceja que a hidroxicloroquina deve prevenir a loucura, porque “os que não a querem tomar se tornam loucos” 11. Finalmente, em junho, a OMS decide parar os ensaios da hidroxicloroquina e o dr. Anthony Fauci concorda.

Durante o resto do ano de 2020, Rault manteve-se em guerra em defesa da hidroxicloroquina e contra o establishment médico do seu país. Nesse período, o uso da hidroxicloroquina politizou-se a nível mundial, defendido por grandes autoridades médicas como Donald Trump e Jair Bolsonaro e desacreditado pela generalidade da comunidade médica e científica. O caso de Raoult inclui uma queixa contra si da Ordem dos Médicos francesa e processos dele contra dirigentes da Ordem.

Agora

Tendo adquirido o hábito de dar maus conselhos sobre a Covid-19, Didier Raoult continua a sua missão. Desaconselha o uso de máscaras e considera as medidas de confinamento desnecessárias, já que a pandemia deveria ser tratada, clinicamente, caso a caso, através dos hospitais. Exatamente aquilo que governos de todo o mundo tentam a todo o custo evitar, ou seja, que os sistemas de saúde sejam inundados de casos sem capacidade de resposta – o que testemunhamos neste momento ser um perigo iminente em muitos países, com casos pontuais de ultrapassagem de recursos disponíveis e de situações de medicina de catástrofe, em que cabe aos médicos ou a outros agentes de saúde tomar a decisão desumana de quem é deixado morrer e quem é socorrido.

Eu considero declarações deste tipo extremamente graves. Perante a situação aflitiva que decorre no seu país, não lhe terá passado pela cabeça que poderia estar enganado, que poderia estar a dar maus conselhos, com consequências atrozes? Encontrei, durante a pandemia, cientistas em Portugal que por vezes mostravam dúvidas sobre algumas políticas de saúde pública. Mas, prudentemente, evitavam discordar abertamente. "Não sei bem se isto será o mais adequado, tenho que estudar melhor o assunto", diziam. A vaidade não os cegava.

O lado sombrio da Força

Há ideias que, para o bem ou para o mal, não adiantam muito para a nossa vida, mas há más ideias que podem revelar-se mortais. Didier Raoul não mostra qualquer consciência dos erros que cometeu, das previsões erradas e dos maus conselhos que deu, no meio de uma crise de saúde gravíssima. Recorre, para garantir a sua vaidade, ao alimentar de uma hoste de seguidores nas redes sociais, quase toda feita de adeptos das teorias da conspiração, mas também de públicos assustados com as consequências da crise e que buscam uma visão alternativa, qualquer visão, mesmo que seja incoerente e, em última análise, mortal.

Foi em tempos um cientista notável, mas hoje é uma caricatura. Talvez traços negativos da sua personalidade se tenham agravado, alimentados pelo vício do poder institucional. Por isso disse que Didier Raoult se passou para o lado sombrio da Força, para usar a linguagem popular da Guerra das Estrelas.

Não é o único caso mas, felizmente, casos como o seu são raros. A ciência é um empreendimento coletivo, com procedimentos que vigiam o trabalho de cada um e procuram garantir que os cientistas se mantenham honestos. Nem sempre se consegue.


Notas

1  Sound and Fury at the Microbiology Lab, Science, 2/3/2012.

2  Les prédictions climatiques sont absurdes!, Didier Raoult, Le Point, 8/10/2013.

3  Sévère rapport sur l'Unité de recherche du professeur Raoult, Benoît Gilles, 9/10/2017, Marsactu,

4  Raoult nie (à tort) avoir “jamais prononcé le mot ‘deuxième vague’”, Nabail Touati, 26/6/2020, Huffington Post (FR)

5  Le professeur Didier Raoult: “Ce coronavirus n’est pas si méchant”, Anne-Laure Barret, Le Journal du Dimanche, 1/2/2020

6  “Quoi? Quelle deuxième vague?" Top 7 des médecins qui auraient mieux fait de se taire sur le Covid-19, Theo Moy e Vincent Gény, Marianne, 29/10/2020

7  Coronavirus: huit questions sur l’hydroxychloroquine, possible traitement du Covid-19, Hervé Morin et al, Le Monde, 24/3/2020

8  Chloroquine for the 2019 novel coronavirus SARS-CoV-2, P. Colson, J.M. Rolain, D. Raoult, ScienceDirect março 2020, ,

9  Covid19 & cloroquine: à propos d’une étude tràs fragile, et d’un dangereux emballement médiatique et politique, Curuilogie, @curiolog, 22/3/2020

10  Coronavirus, qui est Didier Raoult, la “star mondiale” de la microbiologia que assure avoir trouvé le remède contre la Covid-19?, Mathilde Goupil, Franceinfo, 28/3/2020

11  Trump et l'hydroxychloroquine: Raoult dénonce une “hallucination collective” autour de ce médicament, Hugo Septier, BFMTV, 19/5/2020

 

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