O marxismo de Leo Panitch

Tradução de The Marxism of Leo Panitch, artigo de Chris Maisano no Jacobin

Leo Panitch enfatizou três temas centrais ao longo da sua carreira: o processo de formação de classes, o papel fundamental dos partidos políticos em facilitar esse processo e a necessidade de transformar o estado em vez de geri-lo na sua forma atual. Ao fazer isso, ele deu ao movimento democrático-socialista um tesouro inestimável de recursos para mudar o mundo.

Ralph Miliband começa o seu livro clássico, “Marxism and Politics”, com a observação surpreendente de que nenhuma figura importante na tradição marxista, incluindo os próprios Karl Marx e Friedrich Engels, ofereceu uma elaboração sistemática da teoria política marxista. Para Miliband, essa ausência gritante poderia ser explicada pela posição ambivalente que os marxistas tipicamente atribuíam à política nas suas conceções de vida social nas sociedades de classes. Paradoxalmente, a presença generalizada do conflito e, portanto, da política, no pensamento marxista tendia a drenar a esfera política formal da sua especificidade e autonomia em relação a outras áreas da vida social.

“Esta mesma presença generalizada da política”, argumenta Miliband, “parece torná-la menos suscetível a um tratamento particular, exceto na descrição puramente formal de processos e instituições que os marxistas precisamente queriam evitar”.

Nas suas formas mais extremas, essa tendência pode derrubar a distinção entre política e economia, como na ideia de que os atores políticos são simplesmente portadores de interesses objetivos, preexistentes, sem qualquer autonomia própria – uma ideia que, por sua vez, requer um questionável conceito como a “falsa consciência” para explicar porque os trabalhadores muitas vezes não lutam pelos seus próprios interesses no mundo real.

A imagem espelhada dessa conceção é a separação nítida e respeitosa de economia e política em expressões de “base” e “superstrutura”. O marxismo não é uma forma de determinismo económico, como às vezes alegam os seus críticos. Mas é inegável que certos textos-chave do cânone marxista, incluindo o prefácio de Marx, de 1859, a “Uma Contribuição para a Crítica da Economia Política”, se prestam a tal leitura.

A teoria marxista está certa ao tratar o sistema económico como o ponto de partida para a compreensão das “leis do movimento” de uma dada sociedade. Mas Miliband também estava correto ao observar como enfatizar corretamente o modo de produção "resultou, em relação à análise social e apesar das denegações rituais relativas ao ‘determinismo económico’, num marcante ‘economismo’ no pensamento marxista”.

Ralph Miliband

Ralph Miliband

 

Essa tendência levou ao subdesenvolvimento severo de estratégias realistas para avançar em direção ao socialismo nas condições de capitalismo avançado e democracia liberal. Para muitos socialistas, também deu licença a um utopismo não convincente sobre o “enfraquecimento” do estado e a transcendência da política numa sociedade pós-capitalista. Como Miliband concluiu, “a suposição comummente feita pelos marxistas antes de 1917 de que a própria revolução socialista – dado o tipo de movimento popular esmagador que seria – resolveria os principais problemas políticos que se lhe apresentariam” persistiu até o século XX e não se limitou às correntes que se identificavam explicitamente com o legado da Revolução Bolchevique.

O tristemente falecido Leo Panitch foi um dos alunos mais brilhantes de Miliband. Junto com o seu amigo íntimo e colaborador Sam Gindin, Panitch baseou-se no trabalho de Miliband para desenvolver um marxismo que era fundamentalmente político, que procurava evitar as armadilhas do leninismo e da social-democracia. Como o “Political Marxism” de Ellen Meiksins Wood e Robert Brenner, Panitch enfatizou o papel da agência política e do conflito na compreensão da dinâmica do desenvolvimento social. Ao contrário de Wood e Brenner, no entanto, o seu foco principal não foi analisar as origens históricas do capitalismo, mas perguntar como o movimento da classe trabalhadora poderia desenvolver a sua capacidade de exercer o poder político em busca da transformação democrático-socialista.

Para tanto, Panitch enfatizou três temas centrais, ao longo das suas décadas de trabalho intelectual e prático: o processo de formação de classes, o papel fundamental dos partidos políticos em facilitar esse processo e a necessidade de transformar o estado em vez de “esmagá-lo” ou tentar manobrá-lo na sua forma atual. Ao fazer isso, ele e os seus colaboradores deram ao movimento democrático-socialista um tesouro inestimável de recursos para nos ajudar a pensar e agir sobre os desafios centrais que enfrentamos hoje.

Não automático: o processo de formação de classes

O marxismo de Panitch começou no início, o “Manifesto Comunista” de 1848. Especificamente, ele fluiu da proposição crucial, mas muitas vezes esquecida, de Marx e Engels de que o objetivo imediato do movimento socialista é a formação do proletariado em classe. Tal formulação implica que as classes não são simplesmente categorias económicas objetivas, mas, como disse Adam Przeworski, os “efeitos das lutas estruturadas por condições objetivas que são simultaneamente económicas, políticas e ideológicas”.

Classe, nesta conceção, é um processo e não uma coisa, o que por sua vez significa que a formação de classe nunca é linear nem completa. As classes na sociedade capitalista são continuamente organizadas, desorganizadas e reorganizadas no espaço e no tempo.

Em vez de classificar os trabalhadores em diferentes frações de classe de acordo com sua posição ocupacional, o desafio é “como visualizar e desenvolver o potencial de novas formas de organização e formação da classe trabalhadora no século XXI”.

A concepção de classe de Panitch carrega a clara influência dos grandes historiadores marxistas britânicos de meados do século XX, particularmente E.P. Thompson e o seu estudo monumental “The Making of the English Working Class”. No seu prefácio ao livro, Thompson define classe como “um fenómeno histórico, unificando uma série de eventos díspares e aparentemente desconexos, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência. Sublinho que é um fenómeno histórico. Não vejo a classe como uma ‘estrutura’, nem mesmo como uma ‘categoria’, mas como algo que de facto acontece (e pode ser demonstrado que aconteceu) nas relações humanas”.

Classe, nesta visão, não nos é simplesmente dada pelos mecanismos abstratos do sistema económico, mas é feita e refeita por meio da ação e interação humana consciente.

Ralph Miliband

E.P. Thompson falando a manifestantes contra armas nucleares em 1980. (Wikimedia Commons)

 

Thompson deverá ter ido longe de mais ao negar os aspetos estruturais e objetivos do sistema de classes, e Panitch não via a classe como um fenómeno essencialmente subjetivo ou discursivo. Mas o impulso subjetivo do marxismo de Thompson deixou claramente uma marca nas ideias de Panitch sobre a formação de classes, algo que talvez se manifeste mais claramente em "The Impasse of Social Democratic Politics", a sua polémica magistral contra Eric Hobsbawm e a tendência New Times no comunismo inglês, associada à revista “Marxism Today”.

A vitória de Margaret Thatcher nas eleições de 1979 pôs a esquerda britânica à procura de explicações para a razão porque os conservadores não só foram capazes de derrotar o Trabalhismo nas urnas, mas de inaugurar um projeto hegemónico que rompeu com o consenso sobre o welfare state da Grã-Bretanha do pós-guerra. Como descreveu o marxista britânico-cingalês A. Sivanandan, a escola New Times argumentou que o Partido Trabalhista e a esquerda em geral “estavam demasiado mergulhados no seu próprio estupor sindicalista para ver que a classe trabalhadora estava a decompor-se sob o impacto das novas forças de produção e as velhas formas de organização do Labour estavam se tornar-se quebradiças”.

À medida que a vida económica mudou da indústria para os serviços e da produção para o consumo, a esquerda e o movimento operário tiveram que mudar também, para não ser atirados para o caixote do lixo da história. Com a classe trabalhadora industrial sujeita a um declínio numérico irreversível, todas as instituições e valores tradicionais do movimento tiveram que ser questionados.

O thatcherismo, de acordo com os teóricos da New Times, ligou-se a um profundo anseio por individualidade e escolha contra a uniformidade sufocante do estado de bem-estar, uma tendência que só se aprofundaria enquanto as fileiras da classe trabalhadora industrial, junto com as práticas organizacionais e culturais que criara ao longo de décadas, continuassem a ser erodidas.

Panitch não era, de forma alguma, um defensor acrítico do “velho” movimento operário e da sua orientação política. Em “Impasse”, ele critica a prática dos partidos social-democratas e trabalhistas, precisamente por causa do seu apego teimoso às formas tradicionais de política de classe, a não menos importante das quais foi a influência estultificante do “centralismo social-democrata” na vida do partido. Panitch concordou que a crise da social-democracia do pós-guerra significava que os partidos de esquerda e os movimentos trabalhistas dos países capitalistas avançados tinham que se transformar, para evitar uma espiral irreversível de declínio.

O que ele objetou, porém, foi ao “reducionismo sociológico” de Hobsbawm e dos seus co-pensadores, que “proclamam o ‘declínio da classe trabalhadora’ com base nas tendências na estrutura ocupacional de homogeneização cultural”. Enquanto a política da classe trabalhadora estava de facto em crise, a explicação para esse estado de coisas tinha que ser localizada, numa extensão significativa, nas práticas do próprio movimento da classe trabalhadora. Aqui, vemos a influência de Thompson, que argumentou que “a rede sociológica melhor entrelaçada” – uma metáfora à qual Panitch voltaria ao longo da sua carreira – "não pode dar-nos um puro espécime de classe, tanto como não o pode dar de deferência ou amor”.

Ralph Miliband

Eric Hobsbawm. (Wikimedia Commons)

 

Para Panitch, a derrota do Labour, no meio da crise capitalista global dos anos 1970, apenas reforçou as premissas básicas da política socialista: “Não há nada automático no desenvolvimento da consciência socialista, quando a economia capitalista não está a gerar benefícios materiais ou segurança de emprego para a classe trabalhadora”. Na sua opinião, Hobsbawm e outros entregaram-se a um determinismo cru ao passar das mudanças na estrutura económica e ocupacional diretamente para os realinhamentos eleitorais populares, sem trazer os partidos políticos para a análise como uma influência mediadora. Ao assumir que as mudanças socioeconómicas por si mesmas criaram o impasse da política social-democrata, eles falharam em compreender o quão ténues as identidades de classe coletivas criadas durante o período de formação do movimento trabalhista realmente eram.

A partir daqui, pode ser tentador abraçar os argumentos de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, que também argumentaram contra o reducionismo sociológico e económico na sua obra fundamental “Hegemony and Socialist Strategy”. Laclau e Mouffe argumentaram que a pluralidade e a complexidade da sociedade capitalista tornaram as conceções marxistas da política de classe obsoletas e que o movimento trabalhista deveria ser rebaixado da sua posição “privilegiada” para apenas um combate entre muitos num movimento caleidoscópico pela “democracia radical”. Panitch não rejeitou os insights genuínos de teóricos como Laclau e Mouffe sobre a importância da ideologia e do discurso na formação de sujeitos políticos, e compartilhou a sua perspetiva de que as identidades das pessoas não têm necessariamente nada a ver com sua localização particular nas relações de produção económica.

Onde eles vacilam, argumentou Panitch, é na sua ideia de que todos os sujeitos ou identidades coletivas potenciais têm peso político ou estratégico equivalente.

Eles não conseguem reconhecer que a relevância das relações de produção oferece um grande potencial, em virtude do seu lugar central na constituição de arranjos sociais em geral, bem como do seu caráter inerentemente explorador e, portanto, contraditório e conflituoso, para lutas sobre e em torno da formação de sujeitos de classe; e que, por sua vez, a possibilidade de realizar um projeto socialista não pode prescindir da identidade, da consciência e da política da classe trabalhadora na sua base de massas e núcleo organizacional. Isso não ocorre apenas por causa do tamanho potencial de uma coletividade que atrai aqueles que ocupam posições subordinadas nas relações de produção, mas novamente por causa da centralidade de tal coletividade para o princípio constitutivo de toda a ordem social. Se a questão é de facto a transformação social, a superação do capitalismo como sistema, então a mobilização do alcance e do poder potencial da classe trabalhadora é a condição organizacional e ideológica chave. Não é suficiente, mas é necessária.

Desde que Panitch lançou a sua polémica contra aqueles que, nas palavras de André Gorz, se despediram da classe trabalhadora, os processos de formação de classe, que tiraram os trabalhadores, pelo menos parcialmente, dum estado de precariedade permanente, inverteram-se ainda mais. As classes trabalhadoras foram completamente remodeladas e reestruturadas por quarenta anos de neoliberalismo, ao ponto do projeto em questão não ser tanto a formação de classe como a re-formação. Como como é que se repara um ovo partido?

No seu ensaio no Socialist Register de 2017 “Class, Party and the Challenge of State Transformation”, Panitch e Gindin afirmam que, considerando a extensão da desorganização da classe trabalhadora hoje, há uma utilidade limitada em “desenhar novas redes sociológicas” – Thompson, novamente – “de quem está ou não na classe trabalhadora”. Nesse sentido, os debates frequentemente acalorados sobre o lugar da chamada classe gestora-profissional na esquerda desviam a atenção de questões mais importantes. Em vez de classificar os trabalhadores em diferentes frações de classe de acordo com sua posição ocupacional, argumentam eles, o desafio é “como visualizar e desenvolver o potencial de novas formas de organização e formação da classe trabalhadora no século XXI”.

É aqui que o segundo grande tema do marxismo de Panitch, o papel organizador indispensável dos partidos políticos, entra em cena.

Os partidos organizam as classes

O sindicato é a forma mais elementar de organização dos trabalhadores. Onde quer que se encontre exploração capitalista, também se encontrará sindicatos ou algo parecido. Eles representam os interesses materiais mais imediatos dos seus membros e são o principal veículo através do qual a luta de classes é travada diariamente sob o capitalismo.

Apesar de sua importância, no entanto, os sindicatos são severamente limitados pelo seu escopo e função. Representam um determinado grupo de trabalhadores que compartilham um determinado empregador e têm um determinado conjunto de interesses relacionados. Por outras palavras, embora os sindicatos surjam da classe trabalhadora, eles não representam e não podem representar a classe trabalhadora como um todo, apenas uma parte dela.

Embora tenham conseguido ganhos materiais significativos para as massas de trabalhadores em grande parte do século XX, hoje estão num estado de profunda crise nos países capitalistas avançados. Como Sam Gindin concluiu, “os sindicatos, como existem agora, já não parecem capazes de responder adequadamente à escala dos problemas que as classes trabalhadoras enfrentam – seja a arena de luta o local de trabalho, a mesa de negociações, a comunidade, a política eleitoral ou o debate ideológico”.

Historicamente, o principal veículo organizacional para organizar o proletariado numa classe tem sido o partido político de massas da classe trabalhadora. Como Panitch argumentou em “Impasse”, o partido é o factor mediador que torna possível criar um sujeito coletivo denominado classe trabalhadora, a partir da massa de trabalhadores individuais. O papel básico de um partido, de acordo com Panitch, é o “reforço, recomposição e extensão da identidade de classe e da própria comunidade, em face de um capitalismo que continuamente desconstruia e reconstruia a indústria, a ocupação e o local de trabalho”.

Essa concepção de partidos políticos e do seu propósito vai muito além das definições da ciência política convencional, que tendem a reduzir os partidos a pouco mais do que equipas concorrentes de candidatos a cargos. Para Panitch, um partido da classe trabalhadora digno desse nome deveria desenvolver a capacidade dos seus membros exercerem o poder por meio da participação coletiva na vida partidária e de um processo contínuo de educação política. Os partidos organizam as classes, não o contrário.

Panitch detalhou mais esta proposta na sua revisão de “Paper Stones: A History of Electoral Socialism”, de Przeworski e John Sprague. Ali, detalhou essa proposta em três partes diferentes.

Primeiro, em virtude da sua localização nas relações de produção, os trabalhadores tendem a envolver-se em conflitos ao longo de linhas de classe. Em segundo lugar, os esforços dos partidos socialistas para mobilizar esses conflitos para a arena política “na verdade, fazem muito do trabalho de organização dos trabalhadores na força social que chamamos classe trabalhadora”. Em terceiro, porque os partidos políticos operam num nível mais amplo do que os sindicatos, têm a capacidade de organizar identidades políticas que abrangem toda a classe trabalhadora, não apenas uma secção dela – o que significa que também têm o potencial de “ir até ao próprio coração de um desafio à hegemonia capitalista, que é necessariamente fundada na negação da proeminência da classe”.

O capitalismo pode ter trazido à existência uma massa de proletários, mas não criou automaticamente uma classe trabalhadora. A formação de classes é algo que apenas os partidos podem alcançar no seu papel de articuladores de uma identidade política coletiva da classe trabalhadora.

Pantich investigou as maneiras pelas quais os partidos organizam classes, não principalmente por meio de lentes teóricas, mas por meio de um envolvimento de décadas com as práticas políticas e organizacionais do Partido Trabalhista britânico. No seu ensaio de 1970 “Ideology and Integration: The Case of the British Labour Party”, ele argumentou contra a ideia, comummente articulada na esquerda trabalhista, de que o partido se tinha se desviado das suas raízes como partido da classe trabalhadora.

De acordo com Panitch, embora o Labour possa ter sido lançado pelos sindicatos e apoiado em grande parte pelos eleitores da classe trabalhadora, isso por si só não o tornava um partido da classe trabalhadora. Pelo contrário: desde o seu começo, o Labour “foi agregador e minimizou o papel de classe do partido” em favor de uma política voltada para o “interesse nacional” – tendência que, numa divertida reviravolta do destino, encontrou uma das suas mais claras expressões em “One Nation Labourism” de Ed Miliband.

Na opinião de Panitch, o elemento crítico na ideologia trabalhista não era tanto a sua dedicação aos métodos parlamentares, por mais importante que fosse, mas a “sua rejeição de uma certa visão da classe trabalhadora e seu papel na história”, ou seja, a ideia de que a classe trabalhadora deve tornar-se a classe dominante. Como tal, o fracasso dos governos trabalhistas em fazer tentativas sérias de seguir o compromisso formal do partido com o socialismo refere-se menos a uma transformação ostensiva do partido do que à continuidade com as suas tendências mais fundamentais.

Durante grande parte de sua carreira, Panitch compartilhou a conclusão de Ralph Miliband de que a crença na possibilidade de transformar o Partido Trabalhista num instrumento eficaz da política socialista “é a mais paralisante de todas as ilusões a que os socialistas na Grã-Bretanha estão propensos". No seu ensaio de 1979 “Socialists and the Labour Party: A Reappraisal”, Panitch repreendeu a esquerda trabalhista por fazer “a sua parte para sustentar a hegemonia sufocante do trabalhismo sobre a classe trabalhadora politicamente ativa” e perguntou se era hora dos socialistas britânicos lançarem um novo partido na década de 1980.

Apesar das suas críticas às vezes agudas, no entanto, a Panitch eram simpáticos os esforços obstinados da esquerda trabalhista para democratizar o partido e aprofundar o seu compromisso com o processo de formação da classe trabalhadora. Acima de tudo, ele admirava e defendia consistentemente o improvável porta-estandarte da Nova Esquerda Trabalhista: Tony Benn.

Ralph Miliband

Tony Benn

 

Benn nasceu em Westminster, filho de um visconde, oficial da RAF e político liberal-trabalhista. Serviu com postmaster general e ministro da Tecnologia no governo trabalhista profundamente dececionante de 1964, de Harold Wilson. As experiências de Benn no primeiro governo de Wilson radicalizaram-no e fizeram-lhe ver a necessidade de um tipo diferente de Partido Trabalhista, com o objetivo de realizar uma transformação completa do estado britânico. Em “Searching for Socialism: The Project of the Labour New Left from Benn to Corbyn”, Panitch e Colin Leys traçam o longo e difícil caminho de Benn e o movimento em torno dele, que foi dedicado à proposição que Benn articulou mais claramente em 1973: “A nossa longa campanha para democratizar o poder na Grã-Bretanha tem, primeiro, de começar pelo nosso próprio movimento.”

Da era Thatcher ao fim do New Labour, Benn e grupos como a Campaign for Labour Party Democracy (CLPD) e o Socialist Campaign Group lutaram para responsabilizar parlamentares e ministros perante a base e dar, tanto aos membros trabalhistas comuns como aos ativistas de movimentos sociais fora do partido, um papel significativo no desenvolvimento e implementação da política partidária – tudo com o objetivo de fazer “o sistema parlamentar servir ao povo e não a vaidade dos parlamentares”.

Benn e a New Left do Labour também ligaram a questão da democracia partidária à democracia sindical, o que irritou os líderes sindicais não acostumados aos tipos de críticas que Benn não temia fazer em público. Como Panitch e Leys comentaram com certa delicadeza, “para um político trabalhista pisar o terreno sensível dos defeitos da estrutura organizacional interna dos sindicatos, sem falar no seu economismo, era realmente perigoso”.

Muitas dessas críticas foram dirigidas à forma como os líderes sindicais usavam votos em bloco nas conferências do Partido Trabalhista, nas quais um líder sindical usava milhares de votos, em nome de todos os membros do partido do seu sindicato. Enquanto Benn e a Nova Esquerda Trabalhista apoiaram os sindicatos nas suas batalhas contra as políticas de restrição salarial tanto dos governos conservadores como dos trabalhistas, também se irritaram com o compromisso persistente dos sindicatos com os arranjos corporativistas que estavam a ser abandonados pelos capitalistas e gestores estatais na década de 1980 .

Como Panitch argumentou numa série de ensaios penetrantes sobre o corporativismo, esses arranjos eram perigosos não só porque, como um sistema de colaboração de classe induzido pelo estado, eles transformavam os líderes sindicais em agentes de disciplina e controle sobre as bases. Ele temia que a própria ineficácia do corporativismo em conter a militância industrial durante a década de 1970 aumentasse a possibilidade de medidas coercivas não só contra liberdades sindicais específicas, mas uma viragem mais ampla em direção ao estatismo autoritário. Desde então, o corporativismo desapareceu junto com a erosão do movimento trabalhista, mas Panitch foi presciente ao antecipar uma expansão dos aspetos mais coercivos e repressivos do estado como parte da viragem neoliberal.

Porquê prestar tanta atenção às questões frequentemente misteriosas da democracia partidária e sindical? Afinal, há um perigo real de que o compromisso de transformar as estruturas e os procedimentos das organizações políticas existentes possa retirar os socialistas do trabalho de formação de classe para o mundo rarefeito do combate burocrático. Esta contradição abateu-se sobre a Nova Esquerda trabalhista desde a revolta de Benn até ao mandato de Jeremy Corbyn como líder trabalhista, e provavelmente atingirá o novo movimento democrático-socialista nos estados Unidos.

Apesar desses perigos, no entanto, os socialistas não têm escolha a não ser dar prioridade às questões de democracia partidária e sindical. Isto não ocorre apenas porque a democracia é desejável em si, mas porque as organizações que operam em linhas oligárquicas não irão gerar as capacidades políticas e administrativas populares que serão necessárias para transformar radicalmente o estado.

Como Panitch e Gindin argumentam no seu ensaio, “Transcending Pessimism: Rekindling Socialist Imagination”, na ausência de capacidades populares para governar a economia, a sociedade civil e o estado – habilidades que só podem ser aprendidas por meio da prática de construir organizações socialistas e culturas dentro do capitalismo – “as pessoas não poderiam dirigir uma sociedade mesmo que o poder fosse entregue pelas classes dominantes”. Como tal, elas seriam condenadas a viver sob a tutela indefinida de funcionários do estado a governar em seus nomes, como no “socialismo real” do bloco soviético ou na China e Cuba hoje.

Um tipo diferente de estado

Chegamos, então, ao cerne do marxismo de Panitch: a questão do estado e o seu papel na sociedade capitalista e na transição para o socialismo democrático.

Se há uma ideia com a qual ele e seus colaboradores mais próximos são identificados, é a sua rejeição da dicotomia "mercados versus estados" tão comum nos comentários políticos convencionais, e o seu foco relacionado nas relações íntimas entre o capitalismo global e o estado americano em especial. “The Making of Global Capitalism: The Political Economy of American Empire”, foi a realização culminante da parceria intelectual de décadas de Panitch e Gindin, e articulou mais claramente a sua conceção da relação complexa entre os estados e o sistema capitalista global. (Jacobin publicou um simpósio sobre o livro depois dele ser lançado, que se pode ler aqui).

Muitos analistas ainda têm a ilusão de que o projeto neoliberal mantém os mercados e os estados em oposição uns aos outros e busca promover os primeiros às custas dos segundos. Panitch e Gindin nunca aceitaram essa estrutura e devotaram muito de seus talentos para demonstrar a proposição de que os estados-nação, longe de serem marginalizados ou superados na era do capitalismo global, foram os seus principais arquitetos.

Ao longo de muitos anos e muitas obras, eles apresentaram um caso convincente de que os interesses capitalistas dependem de um mundo de estados para criar a estrutura dentro da qual operam, e do estado americano em particular, para superintender e coordenar a sua gestão global. Para tanto, o estado americano reestruturou, não apenas a si próprio, mas outros estados por meios económicos, políticos ou militares, a fim de tornar possível o que é abstratamente denominado “globalização”. Na sua opinião, a expansão do capitalismo para todos os cantos do planeta não resultou de algum desdobramento inexorável das leis e tendências naturais do sistema, mas de um projeto político consciente “realizado pelos agentes humanos e pelas instituições que eles criaram, embora sob condições não de sua escolha”.

Ao formular essa análise, Panitch e Gindin desenvolveram e ampliaram o trabalho pioneiro de Ralph Miliband na teoria do estado marxista, particularmente o seu livro clássico de 1969, “The State in Capitalist Society”. Mas suas reflexões sobre o livro, cinquenta anos após a sua publicação, Panitch destacou o seu propósito básico: desafiar tanto as teorias pluralistas de poder que dominaram o estudo da política no período pós-guerra como a ideia keynesiana de que a formulação de política económica se tornou autónoma dos interesses capitalistas. Apesar das enormes mudanças na economia política desde a época de Marx, Miliband insistiu que o capitalismo permaneceu “um sistema atomizado que continua a ser marcado, que na verdade é mais do que nunca marcado, por aquela contradição suprema de que Marx falou há cem anos, a saber, o contradição entre o seu caráter cada vez mais social e o seu duradouro propósito privado”.

Leo Panitch e Sam Gindin

Leo Panitch e Sam Gindin

 

Enquanto Panitch e Gindin estavam altamente sintonizados com as tendências duradouras do estado capitalista, eles também estavam cientes das muitas formas como ele mudou, em grande parte como resultado das lutas populares, desde os tempos de Marx e Engels. Em “The State and the Future of Socialism”, Panitch observou que Marx, Engels e Lenine tendiam a enfatizar o estado como uma forma abertamente repressiva de organização de classe, um instrumento de dominação física da burguesia sobre a classe trabalhadora. Não é difícil entender porquê, já que a maioria dos regimes políticos da sua época eram abertamente autoritários e não se hesitavam em afogar os seus oponentes em sangue.

À medida que os movimentos democráticos e da classe trabalhadora cresceram em tamanho e força, eles mudaram o modo de governo capitalista para instituições representativas e parlamentares. Essa mudança certamente não eliminou as capacidades repressivas do estado – e, como Panitch apontou, a ascensão do neoliberalismo augurava o crescimento potencial de um novo estatismo autoritário. Mas tendeu a atenuar o seu uso contra movimentos populares em países capitalistas avançados com regimes políticos liberais.

Sob esta luz, os principais elementos da teoria marxista tradicional do estado socialista – o esmagamento do estado burguês, a ditadura do proletariado e o desaparecimento do estado – tiveram que ser reexaminados e, se necessário, descartados. Panitch despachou o declínio do estado com bastante rapidez e com base na própria ambivalência de Marx e Engels sobre o assunto. Como ele apontou, os seus escritos esboçados sobre o estado na sociedade pós-capitalista reconheciam um papel contínuo para a autoridade pública, mesmo sob condições de comunismo pleno. Os deveres e funções básicos que devem ser desempenhados em qualquer sociedade – julgamento de disputas, saúde pública, etc. – permaneceriam, e a autoridade e subordinação necessárias para implementá-los poderiam concebivelmente ser empregadas de forma voluntária e não repressiva.

Se lidar com o declínio do estado foi relativamente fácil, abordar as questões relacionadas com a transição do capitalismo para o socialismo foi mais difícil.

Panitch identificou dois aspetos principais do conceito de “ditadura do proletariado”. O primeiro era a ideia de que o socialismo implicava o domínio dos trabalhadores como classe hegemónica, da mesma forma que os capitalistas governam como classe hegemónica sob o capitalismo. Na opinião de Panitch, este conceito é uma das principais distinções entre o socialismo marxista e a social-democracia, que tende a conceber o socialismo como um modo de cooperação de classe em vez de governo de classe. Nesse sentido, ele retém um valor duradouro que os socialistas fariam bem em preservar.

O segundo, e mais problemático, aspeto do conceito empregado por Marx, Engels e Lenine foi a ênfase que eles colocaram na repressão e na coerção no estado socialista de transição.

Panitch não teve a ilusão de que a transição para o socialismo seria um processo limpo e organizado, mesmo nos regimes políticos mais liberais e democráticos. O que ele reconheceu, com razão, foi a ameaça que os modos autoritários e ditatoriais de governo colocam ao desenvolvimento das capacidades populares necessárias para transitar para o estabelecimento de uma sociedade genuinamente democrática-socialista.

“A ditadura no estado proletário”, argumentou, “terá efeitos mais sérios em termos das consequências da grande ‘autonomia relativa’ do aparelho político em relação à classe trabalhadora”. Por outras palavras, isso daria poder aos líderes partidários, à custa das massas populares, e ameaçaria extinguir quaisquer direitos democráticos e liberdades que os trabalhadores conseguissem conquistar para si mesmos sob o domínio capitalista.

Ele gostava de citar as primeiras críticas prescientes de Rosa Luxemburgo aos métodos de governo dos bolcheviques, bem como o testemunho de um sindicalista soviético durante a perestroika: “Na medida em que os trabalhadores eram atrasados e subdesenvolvidos, isso aconteceu porque, de facto, não houve nenhuma educação política real desde 1924. Os trabalhadores foram embrutecidos pelo partido.” Panitch concluiu que o conceito de ditadura do proletariado deve ser abandonado enquanto os socialistas democráticos “mantiverem uma definição de socialismo em que o proletariado se torne a classe hegemónica” numa sociedade pós-capitalista.

Finalmente, há a questão de “esmagar” o estado burguês na transição para o socialismo. Foi aqui que Panitch teve mais a dizer e fez uma contribuição duradoura para a teoria e estratégia política marxista. Como a sua conceção do papel dos partidos na formação de classe, Panitch chegou a muitas de suas conclusões sobre o assunto por meio de um envolvimento próximo e apaixonado com movimentos de esquerda e da classe trabalhadora em todo o mundo. Mais uma vez, os seus relacionamentos e participação na Nova Esquerda trabalhista desempenharam um papel fundamental na formação do seu pensamento sobre essa questão estratégica central.

Em 1979, um grupo de trabalho da Conferência dos Economistas Socialistas publicou um panfleto intitulado “In and Against the State”. Como os autores colocam no prefácio da segunda edição, a mensagem principal do panfleto falava sobre “as frustrações, contradições e oportunidades vividas pelos funcionários mais ‘profissionais’ do estado – professores, assistentes sociais, conselheiros, enfermeiras, funcionários do Departamento de Saúde e Segurança Social” na Grã-Bretanha. Todos os autores trabalhavam no setor público de uma forma ou de outra e destacaram a natureza profundamente contraditória da relação das pessoas com o estado de bem-estar, tanto como beneficiários de serviços como enquanto funcionários públicos.

O seu objetivo era chegar a uma compreensão mais clara do estado que incluisse tanto o seu papel em apor “um selo protetor e opaco de liberdade e igualdade sobre a dominação de classe do capitalismo” e as formas pelas quais ele proporcionava oportunidades para a organização e luta coletiva. Ao fazer isto, eles procuraram abordar, em termos teóricos e práticos, o que Tony Benn chamou “problemas usuais do reformador”: a necessidade contraditória de “administrar o sistema económico para proteger o nosso povo, que agora está preso a ele, enquanto mudamos o sistema” – um problema que tanto os socialistas revolucionários de inspiração bolchevique como os keynesianos social-democratas procuraram encobrir ou evitar completamente.

Panitch trabalhou em estreita colaboração com elementos da Nova Esquerda trabalhista que procuraram colocar essas ideias em prática, particularmente dentro e à volta do Greater London Council (GLC) na década de 1980. As suas experiências de usar o estado para facilitar o poder popular e a administração democrática informaram a visão de Panitch de que os socialistas nas sociedades capitalistas avançadas não deveriam procurar “esmagar” o aparelho de estado existente, mas transformá-lo em direções radicalmente democráticas. Nisso, ele foi também influenciado pela obra de Nicos Poulantzas, o grande teórico grego-francês cujo diálogo com Ralph Miliband ainda é o ponto de partida para um pensamento sério sobre o estado e a estratégia socialista hoje.

Para Panitch, a questão já não era mais estado versus menos estado, como nos debates académicos estéreis sobre o neoliberalismo, ou esmagar o estado versus simplesmente tomar posse dele. A questão era como criar um tipo diferente de estado no processo de transformação social radical.

Embora não fosse necessariamente a sua intenção, gente como Hobsbawm, Stuart Hall e os seus análogos noutros lugares trabalharam bastante para preparar o terreno para o neoliberalismo da "Terceira Via" de Bill Clinton e Tony Blair, amalgamando o declínio do movimento trabalhista com o declínio da política de classe em geral. Embora as suas prescrições políticas para lidar com a ascensão de Reagan e Thatcher estivessem profundamente equivocadas, eles apontaram algo importante: o amplo apelo do antiestatismo de direita, mesmo entre aqueles que tinham mais a ganhar com um robusto estado de bem-estar.

Como argumentaram Richard Cloward, Frances Fox Piven e outros críticos de esquerda, o estado de bem-estar social costumava servir como um meio de regulação dos pobres, além de fornecer um mínimo de provisão social para os mais necessitados. Na sua contribuição para a coleção “A Different Kind of State?” Panitch argumentou que, na década de 1990, as pessoas nos países capitalistas avançados ficaram desiludidas, ao mesmo tempo, com o “grande governo” tal como o conheciam, e com as falsas promessas de liberdade de mercado. Se o socialismo democrático era sinónimo de desenvolvimento de capacidades populares de autogoverno, então isso exigia uma revisão fundamental, não apenas dos aspetos representativos e parlamentares do estado, mas também de seu aparelho burocrático e administrativo.

A pressão para transformar o estado viria naturalmente, numa extensão significativa, de um movimento pela democracia popular localizado fora das estruturas do estado – incluindo, crucialmente, a ala extraparlamentar de um partido político socialista democrático de massas. Se Marx nos levou para dentro da “morada oculta da produção” para desmascarar os segredos da obtenção do lucro, Panitch propôs olhar para dentro do estado em busca de fontes potenciais de transformação democrática – para o número crescente de trabalhadores empregados nos setores público e quase público e os seus sindicatos.

Como os autores de “In and Against the State”, Panitch afirmou que os funcionários públicos “estavam bem posicionados para serem facilitadores da organização coletiva dos pobres, de modo que não enfrentassem mais o estado ou o mercado como indivíduos impotentes e passivos, mas tivessem alguma identidade e poder”. A insatisfação com a austeridade orçamental, bem como com os aspetos punitivos e coercivos do estado com que as pessoas comuns regularmente entram em contacto, constituem a base potencial de solidariedade entre aqueles que trabalham para o estado e aqueles que deles dependem para serviços e apoio. Na prática, isso implicaria superar a “divisão entre as funções de representação e administração, e substituir, sempre que possível, o princípio da ‘nomeação’ por um eletivo, ou pelo menos a nomeação de quem já tem mandato democrático e meios de sanção popular do grupo”.

Os socialistas não devem, entretanto, presumir que existe um eleitorado pronto para essa agenda na comunidade. A prática atual de representação política tem como premissa a não participação da população em geral nos assuntos governamentais, e os órgãos públicos tendem a reduzir aqueles que entram em contacto com eles a clientes passivos.

“Os líderes e administradores democráticos”, insistiu Panitch, devem estar dispostos e ser capazes de “encorajar e facilitar a organização da comunidades de identidade e interesse”, usando a legitimidade e os recursos dos seus cargos.

Panitch estava bem ciente de que a eleição de um governo democrático-socialista genuinamente comprometido com a transformação do estado e das relações sociais não excluiria, independentemente do seu nível de popularidade, a possibilidade de reação violenta. Ele também reconheceu como a viragem para o neoliberalismo necessariamente envolveu um fortalecimento relativo dos aparelhos repressivos e judiciais do estado, tanto para isolar os governos da impopularidade das suas políticas como para lidar com as consequências sociais da competição de mercado.

“Quanto mais os mercados estão livres da regulamentação”, observou Panitch, “mais pessoas marginalizadas ou derrotadas na competição de mercado passam a precisar de serviços públicos. Instituições de serviços sociais e tribunais não se esvaziam: eles enchem-se – e logo descobrimos que são as pessoas, e não os mercados, que estão sujeitos a uma regulamentação, policiamento e julgamento mais intensos.”

Como tal, ele destacou a importância de democratizar o sistema judicial e reduzir o escopo e a força dos meios de coerção do estado. Ele pediu a ampliação das fileiras do judiciário para além daqueles com educação e formação jurídica formal, estabelecendo sistemas de “assistência jurídica” que forneçam serviços e representação jurídica universal e formando funcionários judiciais para educar as pessoas sobre o sistema legal e como se organizar melhor para ganhar justiça.

Panitch também demonstrou uma preocupação presciente em confrontar e desmantelar o estado carcerário. Isso tinha que ser feito, na sua opinião, embora sentimentos estreitos de “lei e ordem” ainda prevaleçam na sociedade, porque “uma democracia dinâmica não é aquela que representa e congela a opinião corrente. É aquela que incentiva o desenvolvimento das capacidades humanas – acima de tudo, as nossas capacidades coletivas para a criação de uma ordem social governada pela justiça”.

Diante disto, os socialistas democráticos têm a obrigação de apoiar – e, quando necessário, esclarecer – as exigências de desapropriação e retirada de poderes à polícia, mesmo que ainda não tenham o apoio da maioria.

“É uma longa luta”

Na última década, a oposição ao capitalismo global mudou, em grau significativo, do protesto para a política voltada para o poder governamental. Desde o avanço eleitoral do Syriza em 2015, na Grécia, até à ascensão de Bernie Sanders e o crescimento dos Socialistas Democráticos da América (DSA), e ao mandato de quatro anos de Jeremy Corbyn como líder do Partido Trabalhista Britânico, esses desenvolvimentos têm justificado, de formas ao mesmo tempo positivas e negativas, o projeto intelectual de Panitch.

O desempenho extremamente dececionante do Syriza no poder sublinhou os riscos de ganhar o poder do governo sem manter a capacidade do partido de se ligar às forças populares fora do estado, tanto para atender às necessidades sociais como para reestruturar a vida política e económica. Panitch e Gindin foram criticados por “justificar” as deficiências do Syriza, apontando para a falta de recursos internos do país, o poder dos credores da Grécia e o fracasso das forças de esquerda na Alemanha, Holanda e outros lugares em construir apoio para o povo grego nos seus próprios países.

Eles certamente não deixaram de criticar Alexis Tsipras e a liderança do Syriza, mas ao contrário de Yanis Varoufakis, que acusou Tsipras em particular de jogar fora o potencial do referendo de resgate de 2015, eles não colocaram as suas críticas em termos de “rendição” ou “traição”. O registo subsequente do Syriza no cargo justificou muitas das críticas de Varoufakis. Junto com os seus parceiros de coligação de direita, o Syriza levou a cabo profundas medidas de austeridade e adotou uma série de posturas de política externa questionáveis.

Mesmo assim, Panitch e Gindin não estavam errados em lembrar aos seus detratores mais severos na esquerda que eles tinham respostas vagas, na melhor das hipóteses, para as prováveis consequências de uma rotura brusca com o capitalismo global para a qual ninguém teve tempo adequado para se preparar.

Panitch inspirou-se no sucesso inesperado de Bernie Sanders e no crescimento dos Democratica Socialists of America até serem uma presença significativa na vida política americana, e tornou-se amigo de alguns dos ativistas mais comprometidos dos DSA. Ele e Gindin demonstraram definitivamente a centralidade do estado americano na formação e manutenção do capitalismo global, de modo que o surgimento do socialismo democrático no coração do império foi uma fonte de esperança, após as deceções do Syriza.

Observaram o facto de que as campanhas de Sanders e dos DSA estão “focadas na classe” em vez de “enraizadas na classe”. Mas, no contexto da política americana contemporânea, isso pode ser tanto uma força como uma fraqueza, porque oferece a possibilidade de “se tornar enraizado nas lutas da classe trabalhadora, mas comprometido com a transformação radical das instituições geralmente exaustas do movimento trabalhista”, desde a transformação dos sindicatos existentes em organizações genuinamente da classe trabalhadora até a construção de novas formas de organização capazes de alcançar trabalhadores negros, imigrantes e latinos em setores não organizados da economia. Eles entenderam que Sanders teve de concorrer como democrata para ganhar uma audiência na vida política dominante, mas não perderam de vista as limitações e contradições que isso gerou para o movimento que cresceu no seu rasto.

Finalmente, a contingência que Panitch, e Miliband antes dele, pensavam que nunca aconteceria – a ascensão de um socialista democrático genuíno à liderança do Partido Trabalhista britânico – realmente aconteceu em 2015. A eleição de Jeremy Corbyn para a liderança do partido foi quase acidental, mas refletiu a crescente rejeição do New Labour e do seu legado tóxico pela base do partido. Enquanto Corbyn, o seu chanceler paralelo John McDonnell e o movimento em torno deles tinham o apoio de sindicatos importantes e ativistas do Momentum, eles depararam-se continuamente com a maior barreira para a política socialista no partido: os parlamentares trabalhistas, alguns dos quais travaram uma dura campanha contra a liderança de esquerda de Corbyn.

Leo Panitch e Sam Gindin

O líder do Partido Trabalhista Jeremy Corbyn assina o seu manifesto para o vencedor de uma rifa, depois de falar numa conferência do partido sobre modelos alternativos de propriedade, em 10 de fevereiro de 2018 em Londres. (Chris J. Ratcliffe / Getty Images)

 

Apesar de levar o Labour ao seu melhor resultado eleitoral em décadas, em 2017, Corbyn enfrentou hostilidade incessante não apenas dos conservadores, empresas e imprensa, mas também de dezenas de parlamentares trabalhistas que não tinham interesse no socialismo ou na transformação do estado britânico. Corbyn, Momentum e a Nova Esquerda trabalhista tiveram sucesso na promoção de políticas populares de esquerda, mudando a composição dos principais órgãos intrapartidários (pelo menos temporariamente) e criando novos departamentos como a Unidade Organizadora da Comunidade. Mas eles não conseguiram superar as contradições internas do partido em questões políticas imediatas como o Brexit, conflitos de longa data entre parlamentares e eleitores locais e a extrema necessidade de reorganizar a classe trabalhadora britânica após décadas de desintegração política.

Apesar das limitações e fracassos de todos esses esforços, Panitch permaneceu comprometido com a política do socialismo democrático até o fim. Ele reconheceu que construir as capacidades políticas e organizacionais necessárias para reformar a classe trabalhadora, no meio das falhas do capitalismo do século XXI, levaria a muitas falsas partidas e muito tempo, mesmo que as pressões das mudanças climáticas nos façam sentir que não temos tempo de sobra.

A avaliação retrospectiva de Leo da liderança trabalhista de Corbyn poderia facilmente servir como uma epígrafe para o seu próprio projeto político e intelectual: “Quanto é que ele teria realmente sido capaz de fazer, sem uma organização de longo prazo a acontecer fora do governo? Sem reconstruir instituições de classe? Sem educação política? Temos que estar sóbrios sobre isso, é uma longa luta.”

Panitch personificava não apenas o radicalismo político do ambiente da classe trabalhadora imigrante da sua juventude. Ele também incorporou o seu humanismo, o seu internacionalismo e a sua total falta de pretensão. De muitas formas, ele e o seu amigo de toda a vida Sam Gindin dedicaram-se a reconstruir as infraestruturas sociais que tornaram possível a sua Winnipeg operária – o cadinho da grande greve geral de 1919.

O compromisso inabalável de Leo com o socialismo democrático, baseado na necessidade de desenvolver a capacidade coletiva dos trabalhadores de se governar a si próprios, foi uma inspiração para todos nós da Jacobin. As suas contribuições, provavelmente, fizeram mais para moldar as perspetivas políticas da Jacobin do que as de qualquer outra pessoa. Nós, assim como os incontáveis outros que ele orientou e apoiou, temos a grande responsabilidade de levar adiante esse compromisso.


Chris Maisano é editor e escreve para o Jacobin. É membro dos Democratic Socialists of America.

 

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