As nossas almas estão mortas

Como sobrevivi a um acampamento de 'reeducação' chinês para uigures

Após 10 anos a viver em França, voltei à China para assinar alguns papéis e fui presa. Nos dois anos seguintes, fui sistematicamente desumanizada, humilhada e sofri lavagem cerebral

por Gulbahar Haitiwaji com Rozenn Morgat, The Guardian, 12/1/2021

O homem ao telefone disse que trabalhava para a petrolífera, “Na verdade, na contabilidade”. A sua voz não era familiar para mim. No início, não consegui entender porque ele estava a ligar. Era novembro de 2016 e eu estava de licença sem vencimento da empresa, desde que saí da China e me mudei para França, há 10 anos antes. Havia estática na linha; tive dificuldade em ouvi-lo.

“Você tem que voltar a Karamay para assinar os documentos relativos à sua reforma, Madame Haitiwaji”, disse ele. Karamay era a cidade na província de Xinjiang, no oeste da China, onde trabalhei para a empresa de petróleo por mais de 20 anos.

“Nesse caso, gostaria de conceder uma procuração”, disse eu. “Um amigo meu em Karamay cuida dos meus assuntos administrativos. Porque tenho que voltar para buscar papelada? Porquê ir tão longe por uma bagatela? Porquê agora?"

Gulbahar Haitiwaji, Foto: Emmanuelle Marchadour

 

O homem não tinha respostas para mim. Disse simplesmente que me ligaria de novo daí a dois dias, depois de estudar a possibilidade de deixar o meu amigo agir em meu nome.

O meu marido, Kerim, tinha deixado Xinjiang em 2002, em busca de trabalho. Ele tentou primeiro no Cazaquistão, mas voltou desiludido após um ano. Depois, na Noruega. Depois, na França, onde havia pedido asilo. Assim que ele se tivesse instalado lá, as nossas duas meninas e eu juntar-nos-íamos a ele.

Kerim sempre soube que deixaria Xinjiang. A ideia já se tinha enraizado antes mesmo de sermos contratados pela petrolífera. Tínhamo-nos encontrado como estudantes em Urumqi, a maior cidade da província de Xinjiang, e, como recém-formados, começámos a procurar trabalho. Isso foi em 1988. Nos anúncios de emprego nos jornais, muitas vezes havia uma pequena frase em letras pequenas: Nada de uigures. Isso nunca o deixou. Embora eu tentasse ignorar as evidências de discriminação que nos seguiam por toda parte, com Kerim, isso tornou-se uma obsessão.

Após a formatura, ofereceram-nos empregos como engenheiros na empresa de petróleo em Karamay. Tivemos sorte. Mas então houve o episódio do envelope vermelho. No ano novo lunar, quando o chefe distribuía os bónus anuais, os envelopes vermelhos dados aos trabalhadores uigures continham menos do que os que eram dados aos nossos colegas que pertenciam ao grupo étnico dominante da China, os han. Logo depois, todos os uigures foram transferidos para fora do escritório central e mudados para a periferia da cidade. Um pequeno grupo opôs-se, mas eu não ousei. Poucos meses depois, quando surgiu um cargo sénior, Kerim inscreveu-se. Ele tinha as qualificações e a antiguidade certas. Não havia motivo para ele não ocupar o cargo. Mas a colocação foi para um funcionário han que nem tinha diploma de engenheiro. Certa noite, em 2000, Kerim voltou para casa e anunciou que tinha desistido. “Já tive o suficiente”, disse ele.

O que o meu marido estava a experimentar era muito familiar. Desde 1955, quando a China comunista anexou Xinjiang como uma “região autónoma”, nós, uigures, somos vistos como um espinho cravado no flanco do Reino do Meio. Xinjiang é um corredor estratégico e valioso de mais para que o Partido Comunista no poder corra o risco de perder o seu controlo. O partido investiu muito na “nova rota da seda”, projeto de infraestrutura que visa ligar a China à Europa via Ásia Central, da qual a nossa região é um eixo importante. Xinjiang é essencial para o grande plano do presidente Xi Jinping – ou seja, uma Xinjiang pacífica, aberta para negócios, livre das suas tendências separatistas e das suas tensões étnicas. Em suma, uma Xinjiang sem uigures.

Manifestação pró-uigur em Hong Kong in 2019. Foto: Jérôme Favre/EPA

 

As minhas filhas e eu fugimos para França, para nos juntarmos ao meu marido, em maio de 2006, pouco antes de Xinjiang entrar num período de repressão sem precedentes. As minhas filhas, com 13 e 8 anos na época, receberam o estatuto de refugiadas, assim como o seu pai. Ao procurar asilo, o meu marido rompeu totalmente com o passado. A obtenção de um passaporte francês, com efeito, privou-o da sua nacionalidade chinesa. Para mim, a perspetiva de entregar o meu passaporte tinha uma implicação terrível: eu nunca seria capaz de voltar a Xinjiang. Como poderia eu dizer adeus às minhas raízes, aos entes queridos que deixei para trás – aos meus pais, aos meus irmãos e irmãs, aos seus filhos? Imaginei a minha mãe a envelhecer, a morrer sozinha na sua aldeia nas montanhas do norte. Desistir da minha nacionalidade chinesa significava desistir dela também. Eu não conseguia fazer isso. Então, em vez disso, solicitei uma autorização de residência que era renovável a cada 10 anos.

Depois do telefonema, minha cabeça fervilhava de perguntas enquanto olhava a sala silenciosa do nosso apartamento em Boulogne. Porque queria aquele homem que eu voltasse a Karamay? Seria uma manobra para que a polícia me pudesse interrogar? Nada parecido tinha acontecido com qualquer um dos outros uigures que eu conhecia em França.

O homem voltou a ligar dois dias depois. “Não será possível conceder procuração, Madame Haitiwaji. Você deve vir a Karamay pessoalmente.” Desisti. Afinal, tratava-se só de alguns documentos.

"Bem. Estarei aí assim que puder", disse eu.

Quando desliguei, um arrepio percorreu-me a espinha. Eu temia voltar para Xinjiang. Kerim vinha a fazer o possível para me tranquilizar há dois dias, mas eu tinha um mau pressentimento. Nesta época do ano, a cidade de Karamay estava a passar por um inverno violento. Rajadas de vento gelado uivavam pelas avenidas, entre lojas, casas e prédios de apartamentos. Algumas figuras embrulhadas enfrentavam os elementos, encostadas às paredes, mas no geral, não havia uma alma à vista. Mas o que eu mais temia eram as medidas cada vez mais rígidas que regulamentavam Xinjiang. Qualquer pessoa que pusesse os pés fora de casa podia ser presa sem motivo algum.

Isto não era novidade, mas o despotismo tinha-se tornado mais pronunciado desde os distúrbios de Urumqi em 2009, uma explosão de violência entre as populações uigures e han da cidade, que deixou 197 mortos. O evento marcou uma viragem na história recente da região. Mais tarde, o Partido Comunista Chinês culparia todo o grupo étnico por esses atos horríveis, justificando as suas políticas repressivas com a alegação de que os lares uigures eram viveiros de islamismo radical e separatismo.

O verão de 2016 viu a entrada de um novo ator significativo na longa luta entre nosso grupo étnico e o Partido Comunista. Chen Quanguo, que tinha ganho fama a impor medidas draconianas de vigilância no Tibete, foi nomeado chefe da província de Xinjiang. Com a sua chegada, a repressão aos uigures aumentou dramaticamente. Milhares foram enviados para “escolas” construídas quase da noite para o dia no meio do deserto. Eram conhecidas como campos de “transformação pela educação”. Os detidos eram enviados para lá para lhes lavarem o cérebro – e pior.

Eu não queria voltar, mas mesmo assim decidi que Kerim tinha razão: não havia motivo para me preocupar. A viagem levaria apenas algumas semanas. “Eles certamente vão-te chamar para interrogatório, mas não entres em pânico. Isso é completamente normal”, assegurou-me.

Poucos dias depois de desembarcar na China, na manhã de 30 de novembro de 2016, fui ao escritório da petrolífera em Karamay, para assinar os tão alardeados documentos relativos à minha reforma que se aproximava. No escritório com paredes descascadas estavam o contador, um han de voz amarga, e a sua secretária, encurvados atrás de uma tela.

A próxima etapa ocorreu na esquadra de Kunlun, a dez minutos de carro da sede da empresa. No caminho, preparei as minhas respostas para as perguntas que provavelmente seriam feitas. Tentei preparar-me. Depois de deixar os meus pertences na receção, fui conduzida a uma sala estreita e sem alma: a sala de interrogatório. Nunca estive numa antes. Uma mesa separava as duas cadeiras dos polícias da minha. O zumbido silencioso do aquecedor, a sala branca mal limpa, a iluminação pálida: tudo isso definia o cenário. Discutimos os motivos pelos quais fui para a França, os meus empregos numa padaria e numa pastelaria, no bairro comercial de Paris, La Défense.

Então um dos policiais escarrapachou uma foto sob o meu nariz. Isso fez-me o sangue ferver. Era um rosto que eu conhecia tão bem como o meu - aquelas bochechas cheias, aquele nariz esguio. Era a minha filha Gulhumar. Ela posava em frente à Place du Trocadéro em Paris, embrulhada no seu casaco preto, o que eu lhe dei. Na foto, ela estava a sorrir, uma bandeira em miniatura do Turquestão Oriental na mão, uma bandeira que o governo chinês tinha proibido. Para os uigures, essa bandeira simboliza o movimento de independência da região. A ocasião foi uma das manifestações organizadas pela filial francesa do Congresso Mundial Uigur, que representa os uigures no exílio e se pronuncia contra a repressão chinesa em Xinjiang.

Membros da comunidade uigur e apoiantes manifestam-se junto da Torre Eiffel, em Paris, em 2020. Foto: Mohammed Badra/EPA

 

Quer se seja politizado ou não, esses encontros em França são, acima de tudo, uma ocasião para a comunidade se reunir, tanto como os aniversários, o Eid e o festival de primavera de Nowruz. Pode-se ir para protestar contra a repressão em Xinjiang, mas também, como fez Gulhumar, para ver amigos e pôr-se em dia com a comunidade de exilados. Na época, Kerim era um frequentador assíduo. As meninas foram uma ou duas vezes. Eu nunca fui. Política não é minha praia. Desde que deixei Xinjiang, ainda fiquei menos interessada.

De repente, o oficial bateu com o punho na mesa.

"Você conhece-a, não é?"

"Sim. Ela é minha filha."

"A sua filha é uma terrorista!"

"Não. Não sei porque é que ela estava naquela manifestação."

Eu continuei a repetir: “Não sei, não sei o que ela estava a fazer lá, ela não estava a fazer nada de errado, juro! A minha filha não é terrorista! Nem meu marido!”

Não consigo lembrar-me do resto do interrogatório. Só me lembro daquela foto, das suas perguntas agressivas e das minhas respostas inúteis. Não sei quanto tempo durou. Lembro-me que, quando acabou, eu disse, irritada: “Posso ir-me agora? Acabámos, aqui?” Então um deles disse: “Não, Gulbahar Haitiwaji, ainda não acabámos.”

“Direita! Esquerda! À vontade!” Éramos 40 pessoas na sala, todas mulheres, de pijama azul. Era uma sala de aulas retangular qualquer. Uma grande veneziana de metal, perfurada com pequenos orifícios que deixavam a luz entrar, escondia de nós o mundo exterior. Onze horas por dia, o mundo era reduzido a esta sala. Os nossos chinelos rangiam no linóleo. Dois soldados han marcavam o tempo implacavelmente, enquanto caminhávamos para cima e para baixo na sala. Isso era chamado “educação física”. Na verdade, equivalia a um treino militar.

Os nossos corpos exaustos moviam-se pelo espaço em uníssono, para frente e para trás, lado a lado, canto a canto. Quando o soldado gritava “À vontade!” em mandarim, o nosso regimento de prisioneiras congelava. Ele ordenava que ficássemos paradas. Isso podia durar meia hora, ou com a mesma frequência, uma hora inteira ou até mais. Quando isso acontecia, as nossas pernas começavam a formigar com picadelas. Os nossos corpos, ainda quentes e inquietos, lutaram para não balançar no calor húmido. Podíamos cheirar o nosso próprio hálito fétido. Estávamos a ofegar como gado. Às vezes, uma ou outra desmaiava. Se ela não voltasse a si, um guarda a poria de pé e acordá-la-ia com uma bofetada. Se desmaiasse de novo, ele arrastava-a para fora da sala e nunca mais a veríamos. Nunca. No início, isso chocou-me, mas agora já estava acostumada. A gente acostuma-se a qualquer coisa, até mesmo ao terror.

Agora era junho de 2017 e eu estava aqui há três dias. Depois de quase cinco meses nas celas da polícia de Karamay, entre interrogatórios e actos aleatórios de crueldade – numa ocasião fui acorrentada à minha cama por 20 dias como punição, embora nunca soubesse porquê – disseram-me que eu iria para a “escola”. Eu nunca tinha ouvido falar dessas escolas misteriosas ou dos cursos que ofereciam. O governo-as criou para “corrigir” os uigures, disseram-me. As mulheres que partilhavam a minha cela disseram que seria como uma escola normal, com professores han. Disseram que, assim que passássemos, os alunos estariam livres para voltar para casa.

Essa “escola” ficava em Baijiantan, um distrito nos arredores de Karamay. Depois de deixar as celas da polícia, essa foi toda a informação que consegui recolher, de uma placa presa numa vala seca onde alguns sacos plásticos vazios voavam. Aparentemente, o treino duraria duas semanas. Depois disso, começariam as aulas teóricas. Eu não sabia como iria resistir. Como é que ainda não me tinha ido abaixo? Baijiantan era uma terra de ninguém, de onde se erguiam três edifícios, cada um do tamanho de um pequeno aeroporto. Além da cerca de arame farpado, nada mais havia senão deserto, até onde a vista alcançava.

No meu primeiro dia, as guardas levaram-me a um dormitório cheio de camas, meras tábuas de madeira numeradas. Já lá havia outra mulher: Nadira, beliche n.º 8. Fui designada para o beliche n.º 9.

Detidos amarrados e vendados, provavelmente uigures, são transferidos numa estação ferroviária no Xinjiang em 2018. Foto: War on Fear

 

Nadira mostrou-me o dormitório, que cheirava a tinta fresca: o balde para fazer as necessidades, que pontapeou com raiva; a janela com a veneziana de metal sempre fechada; as duas câmaras a girar para frente e para trás nos cantos altos da sala. Era isto. Sem colchão. Sem mobília. Sem papel higiénico. Sem lençóis. Sem pia. Só nós duas na obscuridade e o estrondo de portas de celas pesadas a fechar-se.

Isso não era escola nenhuma. Era um campo de reeducação, com regras militares e um claro desejo de nos quebrar. O silêncio era imposto, mas, fisicamente sobrecarregadas até o limite, já não tínhamos vontade de conversar. Com o tempo, as nossas conversas diminuíram. Os nossos dias eram pontuados pelos apitos estridentes ao acordar, na hora das refeições, na hora de dormir. Os guardas estavam sempre de olho em nós; não havia como escapar da sua vigilância, nenhuma forma de sussurrar, limpar a boca ou bocejar, com medo de ser acusada de orar. Era contra as regras recusar comida, por medo de ser chamado “terrorista islâmica”. Os guardas alegavam que a nossa comida era halal.

À noite, caía no meu beliche meia morta. Tinha perdido a noção do tempo. Não havia relógio. Eu adivinhava a hora do dia por estar frio ou calor. Os guardas apavoravam-me. Não tínhamos visto a luz do dia desde que chegáramos – todas as janelas estavam bloqueadas por aquelas malditas persianas de metal. Estávamos cercadas por um deserto, até onde a vista alcançava. Embora um dos polícias tenha prometido que eu receberia um telefone, não recebi. Quem sabia que eu estava presa aqui? A minha irmã teria sido avisada, ou Kerim e Gulhumar? Era um pesadelo acordado. Sob o olhar impassível das câmaras de segurança, eu não conseguia nem mesmo abrir-me com as minhas colegas presas. Estava cansada, muito cansada. Já não conseguia pensar mais.

O acampamento era um vasto labirinto onde os guardas nos guiavam em grupos por cada dormitório. Para ir aos chuveiros, à casa de banho, à sala de aula ou à cantina, éramos escoltados por uma série de corredores intermináveis iluminados por lâmpadas fluorescentes. O mais pequeno momento de privacidade era impossível. Em cada extremidade dos corredores, portas de segurança automáticas isolavam o labirinto como comportas. Uma coisa era certa: tudo aqui era novo. O fedor de tinta das paredes imaculadas era uma lembrança constante. Pareciam as instalações de uma fábrica, mas eu ainda não tinha conseguido perceber qual era o tamanho.

O grande número de guardas e outras prisioneiras pelas quais passávamos enquanto éramos deslocadas levou-me a acreditar que este campo era enorme. Todos os dias, eu via novas caras, como zombies, com papos sob os olhos. No final do primeiro dia, éramos sete na nossa cela; daí a três dias, havia 12. Um pouco de matemática rápida: eu contei 16 grupos de células, incluindo o meu, cada um com 12 beliches, cheios... isso significava quase 200 detidas em Baijiantan. Duzentas mulheres arrancadas às suas famílias. Duzentas vidas presas até novo aviso. E o campo continuou a encher-se.

Poderia-se distinguir as recém-chegadas pelos seus rostos perturbados. Ainda procuravam encontrar os nossos olhos no corredor. As que estavam lá há mais tempo olhavam para os pés. Arrastavam-se em fileiras cerradas, como robots. Punham-se em sentido sem pestanejar, quando um apito lhes ordenava que o fizessem. Meu Deus, que lhes fizeram para torná-las assim?

Eu pensei que as aulas teóricas nos trariam um pouco de alívio do treino físico, mas eram ainda piores. A professora estava sempre a observar-nos e dava-nos bofetadas nós sempre que podia. Um dia, uma das minhas colegas de classe, uma mulher na casa dos 60 anos, fechou os olhos, certamente de cansaço ou medo. A professora deu-lhe uma bofetada brutal. “Achas que não te vejo a orar? Serás punida!” Os guardas arrastaram-na violentamente para fora da sala. Uma hora depois, ela voltou com algo que tinha escrito: a sua autocrítica. A professora fê-la ler em voz alta para nós. Ela obedeceu, com o rosto pálido, e depois sentou-se novamente. Tudo o que ela tinha feito fora fechar os olhos.

Depois de alguns dias, entendi o que as pessoas queriam dizer com “lavagem ao cérebro”. Todas as manhãs, uma instrutora uigur entrava na nossa sala silenciosa. Uma mulher da nossa própria etnia, a ensinar-nos como ser chineses. Ela tratava-nos como cidadãs rebeldes que o partido teve que reeducar. Eu perguntava-me o que pensava ela de tudo isto. Pensava alguma coisa? De onde seria? Como é que acabou aqui? Teria ela própria sido reeducada antes de fazer este trabalho?

Ao seu sinal, todos nós nos levantávamos como uma só. “Lao shi hao!” Essa saudação ao professor dava início a onze horas de ensino diário. Recitávamos uma espécie de promessa de lealdade à China: “Obrigado ao nosso grande país. Obrigado ao nosso partido. Obrigado ao nosso querido presidente Xi Jinping.” À noite, uma versão semelhante encerrava a aula: “Desejo que meu grande país se desenvolva e tenha um futuro brilhante. Desejo que todas as etnias formem uma única grande nação. Desejo boa saúde ao presidente Xi Jinping. Viva o presidente Xi Jinping.”

O Centro de Formação em Serviços de Aptidões Vocacionais de Educação, da cidadec de Artux, ao norte de Kashgar, Xinjiang. Pensa-se que é uma instalação de reeducação. Foto: Greg Baker/AFP/Getty

 

Coladas às nossas cadeiras, repetíamos as nossas lições como papagaios. Ensinaram-nos a gloriosa história da China – uma versão higienizada, limpa de abusos. Na capa do manual que nos foi entregue estava escrito “Programa de Reeducação”. Continha só histórias das dinastias poderosas e das suas conquistas gloriosas e as grandes realizações do Partido Comunista. Era ainda mais politizado e tendencioso do que o ensino nas universidades chinesas. Nos primeiros dias, isso fazia-me rir. Pensaram mesmo que iriam nos quebrar com algumas páginas de propaganda?

Mas com o passar dos dias, o cansaço instalou-se como um velho inimigo. Eu estava exausta e a minha firme decisão de resistir estava em pausa permanente. Tentei não ceder, mas a escola seguiu em frente como um rolo compressor. Rolou mesmo por cima nossos corpos doridos. Então, era isso uma lavagem cerebral – dias inteiros passados a repetir as mesmas frases idiotas. Como se isso não bastasse, tínhamos que fazer uma hora de estudo extra após o jantar, à noite, antes de ir para a cama. Revíamos nossas lições repetidas infinitamente uma última vez. Todas as sextas-feiras, tínhamos uma prova oral e escrita. Por turnos, sob o olhar desconfiado dos líderes do campo, recitávamos o cozinhado comunista que nos serviam.

Dessa forma, nossa memória de curto prazo tornou-se o nosso maior aliado e o pior inimigo. Permitia-nos absorver e regurgitar volumes de história e declarações de cidadania leal, para que pudéssemos evitar a humilhação pública ministrada pela professora. Mas, ao mesmo tempo, enfraquecia a nossas capacidades críticas. Tirava-nos as memórias e pensamentos que nos prendem à vida. Depois de algum tempo, já não conseguia imaginar claramente os rostos de Kerim e das minhas filhas. Fomos trabalhados até não não passarmos de animais estúpidos. Ninguém nos disse quanto tempo isto iria durar.

Como começar sequer a história do que passei em Xinjiang? Como contar aos meus entes queridos que vivi à mercê da violência policial, de uigures como eu que, pelo estatuto que os seus uniformes lhes davam, podiam fazer o que quisessem connosco, com os nossos corpos e almas? De homens e mulheres cujos cérebros foram completamente lavados – robots despojados da humanidade, cumprindo zelosamente ordens, pequenos burocratas a trabalhar sob um sistema em que quem não denuncia os outros é ele próprio denunciado e quem que não pune os outros é punido. Persuadidos de que éramos inimigos a serem derrotados – traidores e terroristas – , eles tiraram a nossa liberdade. Trancaram-nos como animais num sítio qualquer longe do resto do mundo, fora do tempo: em campos.

Nos campos de “transformação-pela-educação”, vida e morte não significam a mesma coisa que noutros sítios. Cem vezes pensei, quando os passos dos guardas nos acordavam durante a noite, que chegara a hora da nossa execução. Quando uma mão empurrou violentamente a tesoura no meu crânio, e outras mãos arrancaram os tufos de cabelo que caíam sobre meus ombros, fechei os olhos, turva de lágrimas, pensando que meu fim estava próximo, que estava sendo preparada para o cadafalso, o cadeira elétrica, o afogamento. A morte espreitava em cada esquina. Quando as enfermeiras agarraram no meu braço para me “vacinar”, pensei que me estivessem a envenenar. Na verdade, estavam a esterilizar-nos. Foi então que entendi o método dos campos, a estratégia que estava a ser implementada: não nos matar a sangue frio, mas fazer-nos desaparecer aos poucos. Tão devagar que ninguém perceberia.

Recebemos ordens de negar quem éramos. De cuspir nas nossas próprias tradições, nas nossas crenças. De criticar a nossa linguagem. De insultar o nosso próprio povo. Mulheres como eu, que saímos dos campos, jã são somos quem éramos antes. Somos sombras; as nossas almas estão mortas. Fui levada a acreditar que os meus entes queridos, o meu marido e a minha filha, eram terroristas. Estava tão longe, tão sozinha, tão exausta e alienada, que quase acabei por acreditar. Meu marido, Kerim, minhas filhas Gulhumar e Gulnigar – eu denunciei os vossos “crimes”. Implorei perdão ao Partido Comunista pelas atrocidades que nem vocês nem eu cometemos. Lamento tudo o que disse que vos desonrou. Hoje estou viva e quero proclamar a verdade. Não sei se vão aceitar-me, não sei se me vão perdoar.

Como posso começar a contar o que aconteceu aqui?

Fiquei detida no campo de Baijiantan por dois anos. Durante esse tempo, todos à minha volta – os polícias que vieram interrogar os prisioneiros, além das guardas, professoras e tutores – tentaram fazer-me acreditar na enorme mentira sem a qual a China não teria justificado o seu projeto de reeducação: que os uigures são terroristas e, portanto, que eu, Gulbahar, como uma uigur que vivia exilada em França há dez anos, era uma terroris ta. Onda após onda de propaganda desabou sobre mim e, com o passar dos meses, comecei a perder parte da minha sanidade. Pedaços da minha alma despedaçaram-se e quebraram-se. Nunca vou recuperá-los.

Durante os interrogatórios violentos da polícia, prostrei-me sob os golpes – tanto que até fiz falsas confissões. Conseguiram convencer-me de que, quanto mais cedo eu confessasse os meus crimes, mais cedo seria capaz de sair. Exausta, finalmente desisti. Não tinha outra escolha. Ninguém pode lutar contra si mesmo para sempre. Não importa o quão incansavelmente se lute contra a lavagem ao cérebro, ela faz o seu trabalho insidioso. Todo o desejo e paixão nos abandonam. Que opções temos? Uma lenta e dolorosa descida à morte ou a submissão. Se jogamos o jogo da submissão, se fingimos perder a nossa luta de poder psicológico contra a polícia, então pelo menos, apesar de tudo, agarramo-nos ao fragmento de lucidez que nos lembra quem somos.

Não acreditei numa palavra do que lhes estava a dizer. Fiz simplesmente o meu melhor para ser uma boa atriz.

Em 2 de agosto de 2019, após um breve julgamento, perante uma audiência de poucas pessoas, um juiz de Karamay declarou-me inocente. Eu mal ouvi as suas palavras. Escutei a frase como se não tivesse nada a ver comigo. Eu estava a pensar em todas as vezes em que afirmei a minha inocência, em todas as noites em que me revirava na cama, com raiva, porque ninguém acreditaria em mim. E estava a pensar em todas aquelas outras vezes em que admiti as coisas de que eles me acusavam, todas as confissões falsas que fizera, todas aquelas mentiras.

Tinham-me condenado a sete anos de reeducação. Torturaram meu corpo e levaram a minha mente à beira da loucura. E agora, depois de rever o meu caso, um juiz decidiu que não, na verdade, eu era inocente. Eu estava livre para ir-me embora.


Alguns nomes foram alterados. Traduzido por Edward Gauvin [retraduzido por Carlos Cabanita]. Este é um trecho editado de Rescapée du Goulag Chinois (Sobrevivente do Gulag Chinês) por Gulbahar Haitiwaji, com coautoria de Rozenn Morgat e publicado pela Editions des Equateurs.

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